Os heróis escolhemo-los antes dos valores. Comecemos, então, pelos primeiros. Quem é John Galt?
Em Atlas Shrugged, um romance de Ayn Rand, Galt é um engenheiro que organiza uma greve de inventores, empresários e outras elites criativas. Os grevistas não se recusam a trabalhar apenas; abandonam a sociedade e formam uma comunidade à parte. O objetivo é provocar o colapso de um regime que, na sua perspetiva, limita o individuo e promove a mediocridade. Com a economia em ruína, as autoridades prendem Galt e obrigam-no, sob ameaça de uma arma, a apoiar o governo em direto na televisão. Perante a câmara, Galt responde: “Get the hell out of my way.”
“Quem é John Galt?” tornou-se um tropo de uma certa direita americana e é fácil encontrar a sua marca no pensamento e na ação de alguns dos principais empresários de Silicon Valley. A ideia de usar a tecnologia para transcender o Estado e a política é partilhada, em maior ou menor grau, por Marc Andreessen, Elon Musk, Peter Thiel, Mark Zuckerberg e outros. Vê-se no entusiasmo pelas criptomoedas, pela exploração espacial, pelo transumanismo, pelas comunidades digitais sem fronteiras, etc. Não raras vezes, Galt – e personagens como Arthur Dent, do The Hitchhiker's Guide to the Galaxy – são citados pelos seus admiradores como se fossem políticos ou ideólogos e não meras personagens de literatura.
Desvalorizar isto como um culto excêntrico e inconsequente de tech bros é um erro. É uma ideologia de mérito próprio, que penetrou o discurso político e ganha eco, sobretudo entre as gerações formadas na era da globalização e na internet.
Na sua génese está a convicção de que a tecnologia é motor de progresso e não deve ser travado por processos de deliberação coletiva. O indivíduo é a unidade fundamental da política e, mais do que isso, deve permanecer livre de constrangimentos; o Estado, uma estrutura antiquada cujas decisões discricionárias são, não raro, ilegítimas. Os defensores desta ideologia exaltam a objetividade da linguagem informática. A sociedade e a economia, para eles, mais do que governadas, deveriam ser programadas, num exercício de engenharia.
Esta ideologia é comumente chamada de tecno-libertarianismo. O termo destaca os traços individualistas e a centralidade da liberdade. À esquerda, há quem prefira falar em tecno-autoritarismo, para evidenciar as assimetrias de poder associadas ao uso das tecnologias digitais. Declarações de apoio à extrema-direita por parte de alguns destes empresários das empresas de tecnologia e da Administração americana ajudaram a consolidar esta designação, sobretudo na Europa.
A relevância política do tecno-libertarianismo tornou-se visível durante a segunda presidência de Donald Trump. A imagem de Trump, no dia da tomada de posse, ladeado pelos líderes das maiores empresas tecnológicas, ficou na memória coletiva. A rutura entre Trump e Musk não apagam o facto de o dono da Tesla e da rede social X ter desempenhado uma função crítica na Administração americana, testando os freios e contrapesos do sistema. Hoje, Musk admite fundar o seu próprio partido.
Na Europa, a influência é menos evidente. O discurso oficial insiste em conter os excessos das Big Tech e afirmar direitos digitais individuais. Mas estas prioridades estão, muitas vezes, em tensão com o objetivo estimular a inovação, atrair investimento e reforçar a competitividade. Entretanto, partidos populistas recorrem cada vez mais à retórica da disrupção e anti-sistema, ecoando o vocabulário tecno-libertário.
Não é a primeira vez que o otimismo tecnológico assume alguma preponderância no discurso político. O movimento futurista, no início do século XX, exaltava a “máquina” – e Marinetti aproximou-se do fascismo de Mussolini. Durante a Guerra Fria, a tecnocracia e o culto da objetividade também estavam em voga.
Há contudo três diferenças importantes face àquilo com que hoje nos confrontamos. Primeiro, a rejeição frontal do Estado. A maioria dos movimentos tecno-políticos desde a Revolução Industrial procurou capturar ou reformar o Estado; o tecno-libertarianismo procura ultrapassá-lo. Segundo, os seus teóricos não são filósofos ou políticos, mas inovadores e tecnólogos, cuja posição social, económica e financeira os ajuda a difundir as suas ideias. Terceiro, as tecnologias digitais moldam hoje a nossa vida e a comunicação de forma muito profunda e abrupta, e, dada a concentração da indústria, o poder de orientar essa transformação está nas mãos de um grupo restrito de engenheiros e empresários.
Por tudo isto, o tecno-libertarianismo deve ser reconhecido pelo que é: não apenas uma cultura empresarial ou um punhado de ideias marginais, mas uma ideologia política emergente. Uma ideologia que procura substituir a deliberação pelo design, transformar a governação em engenharia. Merece escrutínio não apenas nos EUA, mas na Europa – não só pelo que promete construir, mas também pelo que destrói ou se propõe tornar obsoleto.
Leituras complementares:
Atlas Shrugged, de Ayn Rand
The Techno-Optimist Manifesto, de Marc Andreessen — link
The Rise of Techno-authoritarianism, The Atlantic — link