Ora onde é que eu ia na semana passada? Ah, sim, “Adolescência” na Netflix, um torpedo de talentos vários a quebrar a monotonia da ficção correcta e fofinha com que nos inundam e procuram evangelizar. A minha primeira abordagem serviu sobretudo para elogiar a série, o que repito com ênfase, e referir o pequeno grande pormenor do poder alarmante das redes sociais, seja na frieza das mensagens trocadas para cá para lá, seja no tipo de informação/visualização que os miúdos buscam, ou pior, que o algoritmo lhes envia. Isto é verdade e importante, mas não resume tudo o que está na série, senão estaríamos perante mais um quadro simplista, somos todos maravilhosas criaturas mas as redes sociais transformam-nos no diabo. É precisamente desta conclusão apatetada e simplista, como todo o maniqueísmo, que Stephen Graham fugiu a sete pés. É precisamente por isso que a série é um murro bem no meio da cara, indefensável. Porque o argumento desenha pais que parecem não ter culpa, que depois se interrogam se têm culpa, que concluem que não, mas acham também que poderiam ter feito mais, embora não saibam bem o quê. Que deveriam ter estado mais atentos, em suma, como dizem um ao outro, sentados na cama, no pungente episódio final. Que encerra a série com a bala mais certeira das boas histórias: uma dúvida, uma pergunta no ar, a pedir-nos ajuda, e não uma qualquer resposta redondinha, e tonta de tão ingénua. Há um imenso pano de fundo tabu nesta história. Uma das mais delicadas matérias no mundo actual, enlouquecido por fundamentalismos e conceitos e certezas. Eu próprio o provei na pele, numa crónica que escrevi sobre aquela criancinha que queria um lugar à janela do avião, lugar onde estava uma mulher que o havia reservado e que se recusou a ceder aos ‘apelos’ da mãe da criancinha. Concordei com a mulher que não cedeu o lugar a um capricho patético e levei pancada de alguns dos milhares de novos pedagogos digitais que por aí andam. Mais recentemente, tomei conhecimento de que Rita Pereira também andava a levar tareia porque ousara afirmar que a criança dela fazia umas birras mimadas. Enfim. Percebo que mais de metade do mundo vive dentro de uma campânula onde toca um eterno jazz de fim de tarde, pacífico e melódico, uma musiquinha de elevador do país das maravilhas, onde não há maus, e muito menos crianças manipuladoras. De certeza? Lembro-me de ser ainda muito pequeno e perante os filmes ou documentários sobre assassinos em série (que vemos com demasiada descontracção de entretenimento...) ficar a pensar que cada terrível psicopata teve um pai e uma mãe que acredito que não sonharam com aquele destino. E é aqui que quero chegar. Há, como sabemos, duas importantes teorias sobre o que caracteriza, de facto, o ser humano. Os extremos Rousseau e Hobbes.
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A pergunta do demónio
“Adolescência” deixa no ar a pergunta incómoda. E se o meu filho é um assassino e nunca esteve nas nossas mãos impedi-lo?