Valorizamos pouco as expressões feitas, os adágios populares. De tanto os ouvirmos, de nos serem tão familiares, nem refletimos no que querem dizer. Mas, às vezes, uma ocasião ou acontecimento leva-nos a isso. Foi o que me aconteceu agora, com a inesperada morte de José António Saraiva, o meu primeiro diretor.
No início de janeiro, a minha amiga Carolina mandou-me uma mensagem: "O JAS pediu-me para te reencaminhar este texto". Era um documento Word que começava assim: "Nunca a frase ‘mais vale tarde que nunca’ se adequou tão bem a uma situação (...).” E prosseguia a agradecer-me, quase 10 anos depois, a dedicatória que lhe escrevera no exemplar do livro “Quem disse que era fácil” - a biografia do António Costa que eu e o Bernardo Ferrão publicámos no verão de 2015.
Eu tinha 21 anos quando entrei na redação do Expresso pela primeira vez, em meados de 1989; ele era o diretor prestigiado do maior jornal do país. Vim a perceber pouco depois, ainda estagiária mas com privilegiado acesso às reuniões da editoria política do jornal (que se realizavam, todas as segundas-feiras de manhã, em torno da mesa redonda do gabinete do JAS), que o que parecia altivez era afinal timidez e que o diretor que percorria o corredor, ensimesmado e distante, possuía um desconcertante (e, por vezes, embaraçoso) sentido de humor, uma disponibilidade permanente e uma sincera vontade de ouvir o que tinham para dizer “os miúdos” - que sempre tratou por você.
Em 1997 pedi-lhe para ir por algum tempo para a redação do Porto (acabei por ficar lá quase um ano). Expliquei-lhe sumariamente as razões (pessoais) e ele nem questionou, disse imediatamente que sim. Nos finais de 2005, quando já se sabia que ia fundar um novo jornal, fui ter com ele para lhe explicar porque ficava no Expresso em vez de, como boa parte dos meus melhores amigos na redação, sair com ele para o Sol. Já não me recordo do que me disse, e tenho pena, mas sei que saí do seu gabinete com a certeza que compreendia as minhas razões.
Poucas vezes voltámos a falar depois disso. Ia sabendo dele por amigos comuns e, claro, ia acompanhando as controvérsias que as suas crónicas (e os seus livros) provocavam a espaços regulares. Em janeiro, em resposta ao texto que me enviara, pedi à Carolina que lhe transmitisse que lhe escreveria de volta mal tivesse oportunidade e que gostaria de almoçar com ele um destes dias. O retomar da conversa não chegou a acontecer. As palavras que me escreveu foram, afinal, uma despedida que nem ele nem eu sabíamos que o era. E que reproduzo aqui porque, do muito que já se escreveu nestes dias sobre o JAS, é esta "nota autobiográfica" a que melhor faz jus à pessoa que foi meu diretor durante os primeiros 15 anos da minha vida profissional: “Quanto à dedicatória, lamento dizer-lhe que não lhe ensinei nada. A minha preocupação foi constituir-me numa espécie de referência de honestidade, de seriedade, de respeito pela verdade e pela dignidade humana. Tentei respeitar as pessoas que comigo trabalhavam e os seus problemas. Jornalisticamente, procurei praticar um jornalismo com alma, agressivo mas rigoroso e não sensacionalista. Você integrou-se muito bem neste espírito, porque, no fundo, isso correspondia às suas características e ao que procurava no jornalismo. O mérito foi seu.”
Sim, talvez o mérito tenha sido meu. Mas tive, sem dúvida, bons mestres. E o Zé António foi um deles. Tinha de lho dizer, tinha de lho agradecer, assim, publicamente. Porque mais vale tarde que nunca.