Opinião

A banalização da vigilância em Portugal: Martim Moniz é a melhor desculpa

Mais uma vez é hasteada a bandeira da famigerada “sensação de insegurança” para vigiar espaços e corpos racializados e pobres. Imigrantes do Martim Moniz parecem ser os próximos alvos

Apenas uns dias após a operação policial na Rua do Benformoso que encostou dezenas de imigrantes à parede como se as suas nacionalidades lhes conferissem estatuto de criminosos, muitos media portugueses circularam conteúdos sobre uma “rixa no Martim Moniz” que afinal ocorreu no Intendente.

A jornalista Bárbara Reis já escreveu um excelente texto sobre o “trabalho de casa” que os colegas de profissão devem fazer antes de espalhar boatos disfarçados de informação. Apesar de considerarmos que esta é uma questão fulcral, por concordarmos com as palavras de Bárbara Reis não nos iremos alongar nesta matéria.

O nosso interesse aqui é outro, e tem a ver com repercussões da tal “rixa no Martim Moniz” na agenda política do País. As últimas notícias indicam que: “PSP quer sistemas de videovigilância no Martim Moniz”;Câmara de Lisboa ‘disponível’ para permitir instalação de videovigilância no Martim Moniz”; “Moedas reitera disponibilidade para instalar câmaras no Martim Moniz se PSP decidir”.

Por outras palavras, tanto o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, como a Polícia de Segurança Pública já se apressaram a anunciar a vontade de instalar um sistema de videovigilância na zona do Martim Moniz como instrumento de combate à “criminalidade”. Isto apesar de, como já escrevemos acerca do Bairro Alto, não terem sido apresentados dados que evidenciem a necessidade de câmaras naquela localidade. Em vez disso, é hasteada a bandeira da famigerada “sensação de insegurança”, tantas vezes utilizada por representantes políticos e forças de segurança para justificar a colocação de câmaras e outros dispositivos tecnológicos que monitorizam espaços e corpos, prioritariamente pobres e racializados, muitas vezes já excessivamente vigiados, marginalizados e discriminados. É assim em várias partes do mundo e não é diferente em Portugal, como aliás vimos no recente caso da morte de Odair Moniz, no Zambujal.

Há pelo menos dois problemas com esta abordagem: o primeiro é que o Estado – sobretudo na área da segurança – não deve orientar a sua actuação por “sensações” e “percepções” mas sim por dados estatísticos e diagnósticos bem elaborados. Esses dados, tanto quanto se sabe, não existem ou não consubstanciam esta necessidade. O segundo é que a instalação de sistemas de videovigilância deve ser precedida de uma fundamentação sólida, dado que a sua adopção tem implicações não só no direito à privacidade, mas pode também contribuir para o aprofundamento de desigualdades estruturais.

A legislação Portuguesa sobre videovigilância começou por acautelar estes princípios. Passada em 2005, esta lei obrigava a que os pedidos de instalação fossem instruídos com dados objectivos que posteriormente eram analisados pela Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), sendo o seu parecer vinculativo. Foram muitos os pareceres negativos da CNPD que alertavam para o carácter intrusivo da tecnologia e para o facto de os pedidos não estarem instruídos com bases consistentes e factuais.

Foi talvez por resultado destas negativas, que em 2012, o então governo PSD fez aprovar a Lei nº 9/2012, que veio retirar, de forma permanente, o carácter vinculativo da decisão da CNPD. Desde então, temos assistido a uma banalização do uso da videovigilância em Portugal. De acordo com os dados publicados, são já 15 as cidades portuguesas com sistemas em funcionamento ou autorizados.

Lembremos o caso emblemático da Amadora que tem, infelizmente, ligações claras ao do Martim Moniz. Em 2008, a Câmara Municipal da Amadora fez um pedido de instalação de 113 câmaras fixas fundamentando a sua necessidade na existência de “zonas consideradas sensíveis”, na “alta densidade populacional, composição étnico-social muito problemática, residentes com antecedentes criminais a um nível preocupante” entre outros. Em 2010, a CNPD emitiu um parecer negativo onde afirmava que “pela sua extensão e pelo seu caráter permanente, [o sistema de videovigilância] virá a ter um impacto profundo e particularmente intrusivo nos direitos dos indivíduos observados pelas câmaras” citando, por exemplo, o direito à imagem, à intimidade, à livre circulação, à anonimidade, e “abrindo o caminho para a implementação de formas de tracking” com efeitos perversos na sua vida privada e familiar dos cidadãos. A CNPD alertava então também para os efeitos perniciosos e possível ilegalidade da vigilância baseada “na sua particular origem racial”.

Finalmente, no seu parecer, a CNPD declarou também que o pedido “não foi capaz de fundamentar de forma efetiva e plenamente satisfatória” que este sistema seria eficaz na “finalidade da proteção de pessoas e bens e da prevenção da prática de crimes” até porque, diz a CNPD, há diversos estudos que questionam a eficácia destes sistemas na prevenção do crime. Assim, termina a CNPD, “se compararmos os custos e sacrifícios impostos aos direitos pessoais afectados com os benefícios obtidos […] os primeiros excedem manifestamente os segundos”.

Três anos após esta recusa inicial, e já sem a exigência de aprovação prévia da CNPD, o sistema de videovigilância da Amadora foi autorizado pelo Ministério da Administração Interna. Hoje a Amadora tem 141 câmaras em funcionamento, sendo a localidade com o maior sistema de videovigilância do País. Não é certamente coincidência que a Amadora seja também um território com uma presença significativa de pessoas racializadas, de estratos socioeconómicos mais baixos, e com um histórico de violência policial contra pessoas negras.

Os imigrantes que habitam a zona do Martim Moniz parecem ser os próximos alvos da videovigilância em Portugal. Como pano de fundo, temos novamente a ideia de que a imigração, origem racial e a criminalidade estão relacionadas. Uma ideia assente em preconceitos e estigmas, como aliás alertou o diretor nacional da Polícia Judiciária, Luís Neves, que disse num evento recente que “estamos a assistir a um momento de desinformação, ‘fake news’ e ameaças híbridas e é isso tudo que leva a fundamentar a perceção de insegurança”.

Aqui chegados, era importante termos um poder político e forças de segurança com um discurso assente em factos e não emoções. Em vez disso, assistimos ao continuado deslumbramento com a tecnologia em detrimento dos direitos dos cidadãos e à subsequente banalização da vigilância. É altura de voltarmos a dar à CNPD o poder vinculativo de analisar e recusar pedidos sujeitando-os assim a uma análise crítica e sem ingerências políticas.

Este texto resulta de investigação financiada por Fundos Nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia (UID ICNOVA).