Portugal vive preso a um ciclo de grandes incêndios que se repete década após década. O abandono agrícola e florestal, a fragmentação extrema da propriedade e a predominância de espécies altamente inflamáveis, como o eucalipto e o pinheiro-bravo, criaram um território vulnerável. A tudo isto, junta-se a ausência de políticas consistentes de ordenamento do território, capazes de integrar floresta, agricultura e as comunidades locais numa estratégia comum.
O resultado é um país onde vastas áreas se transformaram em autênticos rastilhos, prontos a arder sempre que as condições meteorológicas extremas o permitam. Quando chegam os verões, cada vez mais longos e secos, agravados pelas alterações climáticas, a equação é inevitável. O combustível acumulado, somado a ondas de calor, baixa humidade e ventos fortes, transforma-se num inimigo incontrolável.
Foi assim em 2003, repetiu-se em 2005, atingiu o seu auge trágico em 2017 e volta a manifestar-se em 2025.
Depois da catástrofe, o país reage: multiplicam-se meios, relatórios e recomendações. Mas passado o choque, a pressão política e social desvanece. As reformas estruturais ficam pelo caminho e Portugal regressa ao mesmo ponto de vulnerabilidade. O ciclo repete-se e, a cada repetição, o preço a pagar é mais alto: vidas humanas perdidas, casas destruídas, confiança nas instituições em declínio, danos ambientais irreparáveis e prejuízos económicos que se contam em milhares de milhões de euros.
É insustentável continuar a encarar os incêndios apenas como uma emergência de verão. As tragédias de 2017 e 2025 demonstraram, de forma inequívoca, que um sistema assente quase exclusivamente no combate, por mais eficaz que seja, nunca será suficiente para quebrar o ciclo que se repete há décadas. No espectro político, da esquerda à direita, começam a consolidar-se sinais de consenso em torno desta perceção.
O Presidente da Assembleia da República, Dr. José Pedro Aguiar-Branco, reconheceu recentemente que o Estado falhou “demasiadas vezes” na prevenção dos incêndios florestais, sublinhando a urgência de uma política verdadeiramente integrada, coerente e consistente. Também o candidato presidencial, Dr. Marques Mendes, salientou a importância de um pacto para a floresta que não se limite à retórica, mas se traduza em resultados concretos e duradouros, o que implicará avaliar se as medidas adotadas após 2017 foram, de facto, cumpridas e se seguiram a direção correta.
Portugal precisa de uma estratégia nacional clara, estável e transversal, capaz de ultrapassar a lógica reativa e de se estruturar em quatro eixos fundamentais.
O primeiro é o ordenamento e a gestão florestal integrada, com diversificação de espécies, mosaicos agroflorestais, mecanismos de gestão agrupada, que reduzam o impacto do minifúndio, e, sobretudo, incentivos fiscais e financeiros que tornem a gestão ativa da floresta economicamente viável.
O segundo eixo passa pelo planeamento territorial integrado, que requer uma cooperação efetiva entre o Estado, as autarquias e as comunidades, assente num financiamento plurianual estável e consistente. É essencial alinhar os instrumentos de ordenamento do território, quer os de nível superior, os Planos Regionais de Ordenamento do Território (PROT), quer os de nível local, os Planos Municipais de Ordenamento do Território (PMOT), com objetivos claros de redução do combustível florestal e de continuidade das medidas preventivas.
O terceiro eixo consiste na prevenção estrutural e na vigilância. Só com investimento em tecnologias de deteção precoce será possível antecipar riscos. A isso deve somar-se a criação de programas permanentes de silvicultura preventiva, gestão de combustível e articulação com agricultores e pastores, aproveitando o pastoreio dirigido como ferramenta eficaz de limpeza natural.
Finalmente, o quarto integra o envolvimento comunitário e a resiliência social. Formação das populações, literacia em proteção civil nas escolas, planos de evacuação em freguesias de risco e apoio a associações de defesa da floresta são passos indispensáveis para que os cidadãos deixem de ser apenas vítimas potenciais e passem a ser parte ativa da solução.
Portugal não pode continuar refém de um padrão que já conhece demasiado bem. O ano de 2017 mostrou-o com dor e 2025 confirma-o com evidência: não há combate eficaz sem prevenção estrutural. A floresta não pode ser vista apenas como um problema no verão, mas como parte de uma estratégia nacional de desenvolvimento sustentável, capaz de reduzir riscos, proteger vidas e valorizar o território.
O que falta não é diagnóstico, nem relatórios técnicos. O que falta é coragem política. Coragem para enfrentar lobbies, para reformar a gestão florestal, para investir na prevenção com a mesma determinação com que se investe no combate. Coragem para colocar a segurança das populações e a sustentabilidade do território acima de cálculos eleitorais ou interesses imediatos.
Se não mudarmos agora, estaremos condenados a repetir, década após década, a mesma história de destruição e luto. E, nesse caso, a responsabilidade não será apenas das condições climáticas ou da natureza indomável do fogo: será de quem teve poder para agir e preferiu adiar.
A escolha é clara e inadiável: quebramos o ciclo ou o ciclo continuará a quebrar-nos a nós. Portugal não pode esperar pelo próximo verão para decidir o seu futuro. Adiar é escolher a próxima tragédia.
Quebrar o ciclo do fogo: um desafio político e social inadiável
O ciclo repete-se e, a cada repetição, o preço a pagar é mais alto. Portugal precisa de uma estratégia nacional clara, estável e transversal