1) A Golden Age e o Galactic Empire: o que resta da primeira república americana?
Há uns meses, escrevia aqui no Expresso, recordando os relatos da Convenção de Filadélfia que deu origem aos Estados Unidos da América (“EUA”), lembrava que Benjamin Franklin, um dos Founding Fathers, terá dito que o sistema de governo da União seria “uma república… se a conseguirem manter”. Essa República está prestes a completar 250 anos de História, com muitos a questionar se não estamos a assistir ao seu ocaso.
Na saga da Guerra das Estrelas, criada por George Lucas, e muito inspirada pela História real da República e do Império Romano, há uma cena particularmente forte em que o principal vilão, o Chanceler (agora Imperador) Palpatine se dirige ao Senado com um anúncio supostamente assegurador, mas assustador:
“In order to ensure the security and continuing stability, the Republic will be reorganized into the first Galactic Empire” (Para garantir a segurança e a estabilidade contínua, a República será reorganizada no primeiro Império Galáctico) – Star Wars: Episode III — Revenge of the Sith, 2005.
Estas palavras e critérios usados pelo ficcional Imperador Palpatine, ao declarar o fim da República e o início de uma nova era, com maior segurança (e opressão) e perseguição da dissidência, facilmente nos recordam muitos dos discursos que temos ouvido a anunciar uma nova Golden Age (ou “Era Dourada”) para a América, com insinuações expansionistas que vão do Ártico e Canadá até ao Canal do Panamá. É certo que estas palavras – ou tweets – surgem num tempo de declínio e desconfiança no poder dos EUA e de redução da sua importância, pelo menos relativa, no mundo, em especial perante a China.
2) Impérios globais, coloniais e digitais: novas guerras frias contra o Império do Sol?
Depois dos impérios coloniais caírem, do peso global de Espanha ou Portugal, da Holanda ou de França, e principalmente do encolhimento da Inglaterra, o século XX assistiu às tentativas de emergência dos impérios alemão ou japonês, contidos por uma aliança que resultou numa guerra fria entre a Rússia e os EUA. Após a queda do muro de Berlim em 1989, os EUA pareceram ficar numa posição privilegiada perante o mundo, que fez autores como Francis Fukuyama anunciarem o “Fim da História” ou o triunfo global do liberalismo político e económico, encontrando pistas no sentido de que a ideologia liberal se universalizaria…. No entanto, apesar dessa tese ainda ser relevante, houve muitas críticas e a realidade impôs-se, uma década depois, obrigando-nos a repensar tudo, após o ataque terrorista ao coração económico da América, em Nova Iorque, a 11 de setembro, continuando a crescer a dependência energética de países islâmicos e económica, da China.
Hoje vivemos, segundo muitos, uma nova guerra fria, mas entre esta reforçada China e os EUA, sendo a mais recente decisão do Supremo Tribunal dos EUA (“SCOTUS”) uma excelente ilustração disso. Mesmo nas vésperas da retomada de posse do Presidente Trump (gelada, e no interior, como a de Reagan, há 40 anos), já tivemos o primeiro landmark case de 2025. Numa decisão unânime, o SCOTUS considerou que a lei que proíbe a continuação da atividade do TikTok, controlado por diversas empresas chinesas, está conforme com a Constituição e respeita a 1.ª Emenda, relativa à liberdade de expressão. Supostamente, os donos da rede social teriam até dia 19 para ceder o controlo, mas Trump ajudou a conceder um prazo de transição de 90 dias para a adaptação.
3) O martelo do tribunal a partir o relógio do TikTok ou um Império digital inatacável?
Foi um caso em que não houve quaisquer tendências ou “cores” partidárias no tribunal. A decisão foi tomada per curiam (não foi assinada), com duas concurring opinions da juíza Sotomayor (nomeada por Obama) e do juiz Gorsuch (nomeado por Trump). Votaram no mesmo sentido os mais liberais e próximos de Biden e os mais conservadores, escolhidos ou não por Trump. Vamos seguramente ter mais notícias nos próximos dias, mas, para o TikTok, parece que o tempo se está a esgotar. A própria plataforma fez um comunicado a afirmar que está a trabalhar com membros do novo Governo para conseguir uma solução de continuidade, mas vários senadores republicanos já se pronunciaram agressivamente contra o TikTok, pelo menos neste modelo, e acreditam haver uma ameaça chinesa, podendo ser este um primeiro momento de oposição entre partido e o novo Presidente. Há quem diga que para Trump tudo são boas soluções… ou aparece como defensor da “liberdade de expressão” e conquista apoio entre os chineses ou abre caminho para uma compra apressada por alguém como… Musk, que tem todo o interesse em alargar a influência no mundo das suas redes sociais.
Ainda em 2024, a Câmara dos Representantes e o Senados dos EUA aprovaram esta lei, com apoio de democratas e republicanos que bania a rede social, enquanto fosse controlada por capitais chineses. O Presidente Biden assinou e deu avanço à mesma, sendo apresentado um processo de urgência quanto à classificação da aplicação como “uma ferramenta de um adversário estrangeiro que representa uma grave ameaça à segurança nacional”. O processo subiu ao SCOTUS, foi ouvido logo a 10 de janeiro e, ao longo da discussão, a maioria dos juízes expressou dúvidas sobre os argumentos do TikTok, defendendo que a lei é uma restrição à liberdade de expressão, e não uma apreciação do controlo da plataforma pela ByteDance, sediada em Pequim. O Chief Justice, John Roberts, afirmou que não se podia ignorar as preocupações do Congresso de que a China poderia usar o TikTok para espalhar propaganda e armazenar dados sensíveis de utilizadores: "Parece-me que está a ignorar a principal preocupação do Congresso, que era a manipulação chinesa do conteúdo e a aquisição e recolha do conteúdo", respondeu Roberts ao advogado da Plataforma.
4) O Império da lei, das empresas, dos senadores ou do novo Presidente?
Finalmente, como vimos, na sexta-feira, 17 de janeiro, o SCOTUS pronunciou-se unanimemente a favor da lei, contra o TikTok. Dos mais empedernidos conservadores Clarence Thomas ou Samuel Alito até às mais progressistas Sonia Sotomayor e Ketanji Brown Jackson, passando pelos mais moderados, à direita, Roberts, e, à esquerda, Kagan, incluindo os três juízes nomeados por Trump (Gorsuch, Kabanaugh e Coney Barrett), todos tentaram defender a república dos EUA de uma ameaça externa.
Contudo, o CEO do TikTok mereceu lugar junto aos dirigentes das maiores empresas tecnológicas americanas na tomada de posse do Presidente, da Amazon até à Alphabet/Google, da Meta à OpenAI, reunindo-se o poder económico em torno do poder político, numa muito criticável falha na “separação de poderes” reais.
A mesma semana que antecedeu a tomada de posse foi marcada pelas audições, no senado, dos novos membros da Administração (ou Governo) dos EUA, nomeados pelo Presidente e que terão de passar por alguns senadores republicanos que terão incentivos para não alinharem sempre pela linha do partido: (i) começando pela Senadora Susan Collins, do Maine, que resiste num Estado que Trump tem perdido (por cerca de 7% na última eleição), sendo uma verdadeira moderada, a última “encarnada” de um “estado azul” (Colline conta recandidar-se em 2026 e precisará de votos democratas anti-Trump para vencer); (ii) outro exemplo desta espécie em vias de extinção é a Senadora Lisa Murkowski, do Alasca (as suas declarações foram determinantes para afastar, ainda antes de votações, o primeiro nomeado para Attorney General, Matt Gaetz, e tem sido uma voz ativa nas questões do aborto); (iii) também o novo líder da maioria republicana, o Senador John Thune, da Carolina do Sul, está mais longe de Trump do que se poderia imaginar, sendo um institucionalista como o Presidente do SCOTUS e tendo vencido um candidato aprovado pelo novo presidente. O novo líder da maioria é respeitado por ambas as bancadas e isso é valioso e não poderá ser desperdiçado (nem por ele, nem por Trump ou Vance, que preside ao Senado em caso de desempate e conhece bem o “jogo”); (iv) o anterior líder da maioria, o octagenário Mitch McConnell, depois de um recorde de 18 anos à frente dos republicanos no Senado, é outro potencial adversário, não se devendo recandidatar e tendo divergências passadas com Trump já documentadas, apesar não o ter enfrentado como Paul Ryan (um dos anteriores Speakers da Câmara dos Representantes e candidato a VP, com Mitt Romney, em 2012), mas tendo uma linha muito diferente, em especial em termos de defesa e política externa; (v) outro Senador que enfrenta uma difícil reeleição em 2026, depois de ter conseguido vencer por pouco antes, é Thom Tillis, da Carolina do Norte, que já é um alvo dos democratas num estado considerado “púrpura” ou “roxo” (como ele, em posição invertida, estão os democratas John Fetterman, da Pensilvânia ou Jon Ossoff, da Geórgia, estados que Trump acabou de reconquistar e que se apresentarão a eleições em 2026); (vi) o senador Bill Cassidy, da Luisiana, médico, irá presidir à Comissão que se ocupa, entre outras, da Saúde e Educação, já tendo expressado sérias reticências quanto a nomes apontados por Trump e demonstrado apoio aos programas de vacinação que pretende que se mantenham em vigor nos EUA, podendo ser outra “força de bloqueio”, especialmente enfrentando também eleições em 2026); (vii) por fim, um “sétimo senador” poderá ser o recém-eleito John Curtis, do Utah, que herda o lugar de Mitt Romney (um dos nomes que mais fortemente se opôs a Trump no seu primeiro mandato) e muitos se questionam sobre se seguirá a linha mais institucionalista e tradicional daquele que concorreu contra Obama em 2012 ou se se aproximará de Mike Lee, o outro senador do Utah que aderiu ao “trumpismo”. Para já, as pistas vão no primeiro sentido, com o Senador-Eleito a afirmar que “não vou dar um sim incondicional a qualquer coisa que ele [Trump] queira”.
5) Todos os Imperadores caíram: e o “tiktok” do novo-velho presidente já começou a contar, terminando seguramente às 12:00 de 20 de janeiro de 2029, certo?
O Senado dos EUA não está morto. É agora presidido por J. D. Vance (que já divergiu de Musk nas aproximações ao partido Reform U.K. de Farage, extremista) quando recebeu a líder dos conservadores ingleses, Kemi Badenoch, ainda representando uma Direita moderada no respetivo parlamento e que poderá implicar pontes além-Atlântico importantes, da N.A.T.O. ao posicionamento perante a U.E., a Rússia ou a China. O senado em que se procuram os moderados “em vias de extinção” poderá ser uma das formas de “manter a República”, pelo menos nos 2 anos em que se deverá manter intacto, até às eleições intercalares de 2026, em que é muito provável (as apostas apontam nesse sentido) que os democratas recuperem a câmara dos representantes e talvez o senado, tendo de se contar com checks and balances neste âmbito.
Todos os imperadores caíram, mais ou menos rapidamente: Palpatine foi derrotado por Luke Skywalker, na ficção; Júlio César foi esfaqueado nos idos de março após apenas 5 anos de governo; Bonaparte durou cerca de 15 anos (de 1799 a 1814), Hitler foi Chanceler e Führer de 1933 a 1945, por 12 anos; mas Putin já governa há 25 (desde 2000, sendo presidente ou P.M.); e Xi Jinping está no cargo há 12 anos, desde 2013. Diferentemente, o “novo-velho” presidente Trump nunca ocupará a Casa Branca por mais do que 4 anos, porque, ao contrário daqueles regimes, há eleições em 2028, tendo a 22.ª Emenda à Constituição a limitar:
“Sec. 1. Nenhuma pessoa será eleita para o cargo de Presidente mais de duas vezes, e nenhuma pessoa que tenha ocupado o cargo de Presidente, ou atuado como Presidente, por mais de dois anos de um mandato para o qual outra pessoa tenha sido eleita Presidente, será eleita para o cargo de Presidente mais de uma vez (…)”
O presidente que entra em funções está menos constrangido em 2025 do que estava em 2021 (conhece melhor D.C., tem menos oposição no próprio partido, controla melhor a Câmara dos Representantes e o Senado e já tem 3 juízes nomeados por si no SCOTUS – e nem são os que votam mais a favor das suas pretensões), mas já entra condicionado pelo mesmo Senado e Tribunal que acabaram de decidir contra aqueles que parecem ser os seus interesses (vamos ver como evolui o processo TikTok), mas há razões para acreditar que ainda há “freios e contrapesos” na América, nem que seja pelo horizonte de eleições e pela necessidade dos senadores e congressistas eleitos mostrarem trabalho, até 2026, 2028 e 2030.
Que comece o novo mandato de Trump a presidir os EUA, esperemos que se concretizem as melhores expetativas e falhem as piores previsões. A América e o mundo precisam desesperadamente disso.