Que há uma crise no SNS ninguém duvida. Contudo na identificação das causas dessa crise há forte divergência: a maioria das pessoas, comentadores, políticos,etc. atribui a culpa aos sucessivos Governos e respectivos Ministros da Saúde.O PSD alega que o desinvestimento (mais técnico e humano do que financeiro, diga-se em abono da verdade) na Saúde conduziu a esta situação, enquanto o PS culpa a actual Ministra por todos os males existentes exigindo a sua demissão, como se isso fosse a varinha mágica que solucionaria todos os problemas.
Quem escreve estas linhas é médico no SNS há quarenta anos, cirurgião geral há trinta e dois, tendo trabalhado no Serviço de Urgência mais de trinta anos (no Hospital de S.Bernardo em Setúbal, no Hospital do Litoral Alentejano e no Hospital de Faro) e acumulado a actividade pública com a privada e o sector social. Sinto-me portanto muito à vontade para ter uma opinião formada sobre o nosso Sistema de Saúde.
E é preciso ter coragem para afrontar a verdade: uma grande parte da culpa sobre este status quo está do lado das várias Corporações da Saúde das quais a dos médicos é a mais preponderante e poderosa. Fui testemunha, e até vítima, por várias vezes do poderoso lobby corporativo de alguns médicos (felizmente uma minoria),mais interessados em defender os seus privilégios do que em praticar os bons princípios altruístas e humanistas inscritos no nosso Código Deontológico, normas ancestrais que desde Hipócrates de Cós regulam a Profissão Médica. Mais grave ainda quando alguns desta minoria são Directores de Serviço que devem, ou deviam, ser exemplos para os colegas mais novos.
Pude constatar, ao longo destes anos, muitos casos em que os doentes e os seus interesses, são colocados no fim das preocupações dos médicos: doentes que por pertencerem a outra área de residência que não aquela de determinado Hospital, faziam (e ainda fazem) verdadeiros périplos pelo País até lhe serem resolvidos os problemas. Lembro um caso de um doente de Grândola com uma queimadura que iniciou a saga no Hospital do Litoral Alentejano, foi enviado para o S. Bernardo (Setúbal), daqui para o Hospital de Évora (seria o Hospital da área de Residência),de lá para o Hospital de S.José e finalmente para o S. Bernardo onde foi tratado passadas mais de vinte e quatro horas. Isto enquanto a filha seguia no carro atrás da ambulância e me ia telefonando.
Podia dar muitos mais exemplos de casos em que os poderes burocráticos se sobrepuseram aos interesses dos doentes e às suas necessidades, tudo isto sancionado pelos médicos que nunca se opuseram às Administrações várias que determinaram estas aberrações. E progressivamente se foram juntando mais doentes e mais casos: as cólicas renais, os traumatizados crâneo-encefálicos e outros da área da Neurocirurgia, as grávidas e alguns doentes do foro da Cirurgia Vascular, tudo perante o mais ruidoso silêncio por parte dos Directores de Serviço mais interessados em manter os seus privilégios do que em defender os interesses e a segurança dos doentes. E quando algum destes Directores destoa deste concerto burocrático/administrativo ou é demitido ou não tem outro remédio senão sair.
E aqui está uma das causas (talvez a principal) da saída de muitos médicos do SNS: aqueles cujos valores éticos se sobrepõem a esta situação não têm outro remédio se não procurar outras paragens. Alguma vez no meu tempo de interno da Especialidade ou de jovem especialista o meu Director sancionava uma recusa minha de resolver uma complicação num doente operado por mim? Fosse que horas fossem, fins de semana ou feriados os post operatórios eram da responsabilidade do cirurgião (alguns cirurgiões ainda seguem esta regra), tal como o são ainda na clínica privada. Eram estes os exemplos que os Directores de Serviço nos davam e nós transmitíamos aos nossos Internos. Mas infelizmente isto acabou e assim se foi perdendo o prestígio que os médicos tinham perante a sociedade, se foi registando a fuga de muitos médicos do SNS deixando no Sistema Público os mais velhos a aguardar a reforma e os que se foram acomodando com a situação.
Esta pode parecer uma visão simplista de um problema complexo mas penso que é a causa mais importante e a necessitar de resolução rápida. Aliás os últimos Bastonários da Ordem dos Médicos têm tido uma acção já importante quanto a isto mas os resultados tardam. Ora é preciso cumprir um desígnio muito bem expresso numa frase que se encontrava escrita em quase todos os documentos que me foram distribuídos quando tive a oportunidade de estagiar na Clínica Mayo, nos Estados Unidos, já lá vão mais de trinta anos: “Don’t forget that patients and their families come first”
Vítor Rocha
Médico especialista em Cirurgia Geral