Opinião

E se não me conseguir rir?

De onde vem tanta maldade? Qual a origem da crueldade humana? Sem esperança de encontrar uma resposta definitiva, limito-me a partilhar neste artigo alguns pensamentos “em voz alta”

Tem piada: no outro dia fui ver o filme do Panda do Kung-Fu ao cinema e deparo-me com a seguinte deixa, numa das cenas - “3a regra da rua: ninguém quer saber dos teus sentimentos”. Quando saí, comecei a tarefa hercúlea de tentar explicar ao meu filho que, apesar de ser um filme de comédia, aquilo não tem piada. Aquilo não é bem assim. Que “ninguém querer saber dos teus sentimentos”, não tem de ser uma regra da rua – não das ruas onde vivemos.

Questionei-me precisamente sobre que mundo é este que transmite este tipo de mensagens e sobre o porquê de estarmos todos cada vez mais intolerantes uns com os outros, ao ponto de os filmes infantis já passarem esta mensagem.

A indiferença, a maldade ou o egoísmo não têm piada. De onde vem tanta maldade? Qual a origem da crueldade humana? Sem esperança de encontrar uma resposta definitiva, limito-me a partilhar neste artigo alguns pensamentos “em voz alta”.

O Contrato Social

Jean-Jacques Rousseau defende que o homem é bom por natureza e que a civilização o corrompe. No seu estado natural, o ser humano vive em harmonia, mas a evolução para uma sociedade comercial e materialista traz conflitos de interesse. Rousseau afirma que para entender a moral e a política, é necessário estudar a relação entre o homem e a sociedade. A maldade, portanto, não é um traço genético, mas um produto das condições sociais.

A História já nos mostrou que, sob condições muito específicas, a maioria de nós é capaz de quase tudo. O lema do século XXI foi “estávamos apenas a cumprir ordens”. Ainda de acordo com Rousseau, mais especificamente com o seu Princípio da Utilidade, uma pessoa age corretamente quando, de todas as ações que lhe estiverem disponíveis no momento, escolhe aquela que produz o bem maior, que é determinada pela quantidade de felicidade resultante da ação. Assim, esta teoria é também designada como o “Princípio da Maior Felicidade”.

O homem tem ambas a potencialidades dentro de si mesmo: a que se efetiva depende das decisões, não das condições (Frankl, 2008).

É sabido que o ambiente social (e familiar) determina como nos comportamos socialmente. Há uma predisposição natural do ser humano para querer ser respeitado e reconhecido entre os seus pares. Mas até que ponto estamos a levar esta “predisposição” nos dias que correm? Que tipo de escolhas estamos a fazer em nome de um princípio de “maior felicidade” coletivo?

Há situações (e sociedades) que permitem que sejamos reconhecidos por fazer o bem ao próximo. Quando assim é, corre tudo bem. No entanto, noutros casos, só se ganha respeito sendo fisicamente mais impositivo, ao dominar as pessoas através do confronto físico e da violência.

E uma coisa é fazer mal propositadamente, outra coisa é falhar ao apreciar a humanidade de outra pessoa. Falhar ao não perceber as questões igualitárias mais básicas e viver com base na inveja alheia e no querer sempre mais como hoje fazemos.

Esta fraca apreciação da humanização do Outro, o pouco reconhecimento que demonstramos por quem tantas vezes nos faz bem e nos eleva.

É urgente refletirmos coletivamente como chegamos a este ponto de deixar que este tipo de agressividade-passiva esteja instalado nas nossas casas, nos escritórios, nos círculos mais próximos. Num país que se vê a apoiar ideais cada vez menos tolerantes, com os extremismos a ganhar força, não podemos entrar neste jogo do vale-tudo! Num jogo sem regras de humanidade. Falta empatia, a Michelle Obama resumiu com classe esta ideia “é impossível odiar quando olhamos de perto”.

Vamos dissecar um pouco estas razões mais à frente, mas estas são algumas das que encontrei e que justificam a crueldade do ser humano:

- desumanização do outro

- sentimento de perda de controlo

- desejo instrumental de se conseguir algo que se quer muito (poder, dinheiro, etc)

- impulsos primários e (como a vontade que temos de penalizar o outro que fez mal)

Ordem para Desumanizar

Li um texto muito interessante de um psicólogo – Paul Bloom -que disseca as questões da maldade no caso específico dos massacres nazis e da exterminação dos judeus.

Como foram capazes os soldados alemães de cometer tamanha atrocidade? Já vimos algumas opções acima, quando abordámos as razões que justificam a crueldade do ser humano. Mas uma das respostas que mais me intrigou ler nesta entrevista, diz respeito à possibilidade de os soldados terem feito tanto mal porque se sentiam ameaçados pelos judeus, de alguma forma.

Antes desta afirmação, o psicólogo apresenta outra opção que justifica a mesma maldade, de outra perspetiva – a crueldade pela falta de reconhecimento da humanidade no Outro. Afirma que um ser é capaz de fazer mal ao outro quando não o considera sequer como tal – como pessoa, como ser humano com sentimentos -, quando despreza a sua existência.

Cruelty comes from dehumanization. (…) But if you merely thought of these people as animals, you wouldn’t get that pleasure. You can’t humiliate animals — only people. So dehumanization is real and terrible, but it’s not the whole picture.

É a desumanização ou o seu contrário. O mal também se pode justificar pela ameaça de superioridade. Recorda-nos ainda o autor, na dita entrevista, que uma das frases mais associadas ao racismo – muitas vezes proferida pelos supremacistas brancos – é a seguinte: “They will not replace us”.

Aqui está: o receio de ser ultrapassado, de ficar para trás ou de se tornar inferior. E ainda o pensamento latente: “Como é que aquele que eu discrimino, pode ser tão humano quanto eu?”

A questão torna-se ainda mais impressionante quando pensamos na maldade propositada sobre aqueles que são mais vulneráveis e que dificilmente se conseguem defender, como as crianças ou os idosos – muitas vezes com o pretexto da brincadeira ou da piada.

Sobre este tema, o Simon McCarthy-Jones – professor associado na clínica de psicologia e neuropsicologia do colégio de Trinity, em Dublin - afirma que há suas razões pelas quais alguém pode ser mau com os mais vulneráveis: ou não conseguem perceber a dor que estão a causar ou apreciam a dor que estão a causar.

Inflicting harm or pain on someone incapable of doing the same to you might seem intolerably cruel, but it happens more than you might think. Humans typically do things to get pleasure or avoid pain.

Perigo de Afogamento no Ego

É importante relembrar que, culturalmente, crescemos muito com esta ideia de que temos que “ser cruéis” em nome de um bem maior. Em inglês soa melhor – “being cruel to be kind”. Esta “metodologia”, chamemos-lhe assim, esteve muito vincada na educação portuguesa (e não só) até às décadas de 80’s / 90’s. Regra geral, os millenials já não sentiram tanto isto na pele. Uma pedagogia secular de rigor, frieza e até de alguma maldade para se criarem crianças fortes, capazes e ágeis.

No mesmo artigo que referi acima – publicado na BBC – o autor Simon McCarthy-Jones relembra que Nietzsche defendia que a crueldade era crucial para se desenvolver a coragem, a resiliência e até a criatividade.

De facto, sempre existiu esta ideia de que o sofrimento era essencial ao crescimento – algo também defendido nas escolas. Este modo de educar incitou em muitos precisamente a maldade, o ódio e as relações com destrato. O tipo de relações tóxicas que existem atualmente com indivíduos que canalizam todo o tipo de frustrações para os seus parceiros e que destroem famílias ou empresas afogados no seu Ego.

Sentirmo-nos superiores ou inferiores tem a ver precisamente com o nosso Ego – que é uma entidade diferente de nós próprios. É difícil resistir a esta entidade que tem, admita-se, um grande poder de controlo. No entanto, há uma arma muito eficaz no combate aos malefícios e às tentações do Ego – a humildade.

“All too often we think we are the Ego and that identification constrains us, limits us, and makes us less than we could be.” — Mark Epstein

Quando deixamos a genuína humildade trabalhar a favor do nosso julgamento alheio – ou da ausência do mesmo – percebemos que não somos superiores (nem necessariamente inferiores) a ninguém.

Só assim saberemos lutar contra as tentativas de controlo do Ego para enaltecer exageradamente as nossas virtudes e para simular superpoderes que não temos. E só assim conseguiremos também ser mais tolerantes uns com os outros e perceber que eu sou capaz de não me conseguir rir da maldade alheia e que a crueldade não tem piada, de nenhuma perspetiva.

IDEIA EXTRA

EBT – Emotional Banking Transfers

Num exercício fictício, apresento-vos um novo banco – escrito em minúscula para evitar confusões – que, para além de possibilitar transferências de dinheiro e de títulos, permite ainda uma “Transferência de Sentimentos”.

Este novo serviço bancário permite comprar o que nos está em falta no plano sentimental – ainda que a transação esteja sujeita à habitual elevada taxa de juro.

Quão fantástico seria poder comprar a percentagem de autoestima que nos está em falta? Ou uma “dose” extra de compaixão e empatia? Estou em crer que resolveria grande parte dos problemas do mundo ao contribuir para um saldo positivo de bons sentimentos, bem como para o equilíbrio emocional global.

Enquanto não inventam e investem em tal coisa, lá vamos nós realizando estas transferências de sentimentos à moda antiga. A descarregar nos outros as nossas frustrações e os nossos falhanços. Quem faz bullying, por exemplo, está precisamente a realizar este tipo de operação: a transferir sentimentos de tristeza, rancor, falta de amor-próprio e muitos outros, para um outro ser que reconhece como mais fraco ou, por outro lado, como potencial ameaça.

Esta questão é importante de perceber. Fazemos mal porque consideramos o outro pior ou melhor que nós? Porque o achamos inferior de algum modo ou porque não conseguimos lidar com a ideia de reconhecer superioridade alheia?