Apanhar um avião para fazer um aborto às 6 semanas. Não é no Louisiana, é nos Açores. Médicos recusarem tirar sangue a uma mulher que pediu para lhe ser realizada uma IVG. Não foi no Mississipi, foi num hospital do centro de Portugal. Médicos recusarem realizar a ecografia pós-IVG a mulheres internadas. Não foi no Alabama, foi num hospital de Lisboa.
Estes relatos foram recolhidos na belíssima peça da Fernanda Câncio no Diário de Notícias, e levantam-me os pelos da nuca sempre que as leio. O aborto é uma matéria de direitos fundamentais, mas é acima de tudo um direito médico e clínico.
Sendo farmacêutica, e tendo-me especializado nas temáticas deontológicas e bioéticas que dizem respeito a atos como o aborto e a eutanásia, esta questão está claríssima para mim. Todos os países, estados e províncias do mundo que têm restrições e são punitivos no acesso ao aborto têm maiores taxas de mortalidade materna, e maior número de procedimentos que os países que não o têm.
A interrupção voluntária da gravidez é permitida em Portugal até às 10 semanas de gestação, mas mesmo esta conta está inquinada à partida. É contabilizada a partir do último dia da última menstruação, o que exceto se a fecundação tenha ocorrido nesse dia, a mulher fica já prejudicada à partida.
Ainda, o prazo de 10 semanas não é minimamente realista. 58% das mulheres portuguesas tomam pílula contracetiva, não tendo menstruação, mas sim hemorragia de privação. É possível, e aliás bastante comum, que algumas destas mulheres não sangrem mensalmente, sendo que portanto ao repararem que poderão estar grávidas, pelos sintomas que começam a sentir, pode ser já depois deste prazo das 10 semanas.
É importante relembrar que a OMS recomenda as 12 semanas para realização da interrupção voluntária da gravidez, e que Portugal segue apenas a Polónia neste prazo tão curto.
Contudo, não é só neste aspeto que Portugal se destaca na aberração de entraves que colocamos às mulheres que pretendem realizar IVG. De facto, Portugal é dos poucos países da OCDE que não obriga ao registo de objetores de consciência. Isto permite que existam serviços hospitalares pelo país fora sem nenhum médico não objetor, violando claramente o espírito da Lei, e os códigos deontológicos dos profissionais de saúde.
Temos neste momento 18% de indecisos para as eleições do próximo domingo. A grande maioria destes indecisos são mulheres jovens, com ensino superior. A campanha da Aliança Democrática contou com as declarações profundamente infelizes de Paulo Núncio sobre o aborto, congratulando-se por ter feito de uma solução de governo em 2015 que foi bem sucedida a colocar os referidos entraves na Lei.
Não pretendo ser o oráculo destes 18% de indecisos, mas sei uma coisa. O direito ao aborto é uma consensualidade social na sociedade portuguesa, da esquerda à direita. O binómio pró vida/pró escolha já não serve, porque todas as feministas que defendem o direito ao aborto são pró vida, e entendem o quão difícil é realizar um aborto.
Defender o direito à IVG é garantir que perante a situação inconcebível de uma gravidez indesejada, a mulher tenha o direito de decidir o que fazer com ela, não porque é fácil, não porque é simples, mas porque necessita de o fazer.
Há muito para fazer. Tivemos 8 anos de maioria de esquerda que não resolveu o enorme problema dos objetores de consciência, não alargou o prazo para a realização da IVG, e não a inculcou na Constituição. Os direitos fundamentais não se referendam, mas especialmente não se sobrevalorizam, porque como tem sido claro pelo mundo fora, podem ser-nos tirados a qualquer momento.