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Opinião

O passaporte e o “direito de viver”

Por ter passaporte português, sou um dos cidadãos mais livres do mundo. Nada fiz para o merecer

Tenho na mão o meu novo passaporte. Um caderninho de capa bordeaux, com o meu nome, dados biométricos e nacionalidade. Foi com tristeza que entreguei o “velho” — era a memória burocrática de “ser viajado” sob a forma de carimbos esborratados. As três dezenas de páginas em branco equivalem agora a possibilidades infinitas de viagens. Este meu passaporte, o português, abre-me as portas do mundo. É um dos quatro mais poderosos quando se trata de elencar passaportes por “poder” (Passport Index 2023), ou seja, dos que mais dispensam visto ou que apenas exigem visto à chegada. Nada fizemos para o merecer. Estamos na União Europeia. Pertencemos “à Europa”. É essa contingência que nos abre as portas do planeta e nos coloca ao lado da Dinamarca e da Bélgica, um visto abaixo da Suécia e da Finlândia. Dois abaixo de Espanha e quatro abaixo do passaporte mais poderoso do mundo: o dos Emirados Árabes Unidos (americanos e britânicos mais para baixo). Este “passaporte bom” prova que estamos no clube do primeiro mundo. Por isso, não pensamos no assunto. A reflexão só surge se se tem um “passaporte mau”. Os passaportes tal como os conhecemos só se afirmaram na I Guerra Mundial, devido aos espiões, à sedição e, acima de tudo, à afirmação dos nacionalismos. Desde o Egito à Rota da Seda, sempre houve documentos para se poder viajar de forma livre e segura com salvos-condutos. E, possivelmente, vimos o filme “Terminal de Aeroporto”, com Tom Hanks, em que a personagem vivia no aeroporto John F. Kennedy e que, ao perder o seu passaporte de refugiado, habitava nesse limbo, nessa terra de ninguém. Hanks não é um cidadão, é um corpo sem direito de ter direitos. Digo-o tão determinadamente porque: ver-se sem passaporte, sem visto, foi uma constante em escritores e intelectuais ao longo dos anos, nomeadamente no século XX, de Stefan Zweig a Hannah Arendt, a Salman Rushdie, que dizia que o seu passaporte (britânico) era o “livro mais precioso” que possuía. Patrick Bixby, um professor de Literatura na Universidade do Arizona, publicou no ano passado “License to Travel: A Cultural History of the Passport”, onde relata que Arendt (ao contrário de Walter Benjamin que se suicidou na fronteira espanhola) conseguiu obter in extremis um visto para Lisboa e seguir para os EUA. Estes entes sem passaporte, disse Arendt, eram uma nova classe de seres, que sem os papéis, sem o carimbo perdiam a cidadania, e com isso uma série de direitos, como o direito de ter um emprego, o direito à educação, o direito de se movimentar: o direito de viver. Arendt, através da sua experiência pessoal de “sem papéis” no campo de refugiados e depois salva por um visto, compreendeu e escreveu sobre a “diferença entre direitos humanos e direitos de cidadania”. Para quem tem um “mau passaporte” ou para quem se apresenta sem papéis a pedir hospitalidade a um país, é “um corpo que se apresenta sem direitos”. Este é o cenário que tem marcado o século XXI, com as hordas de refugiados e emigrantes económicos que se acumulam nas fronteiras em busca do seu lugar ao sol e de cidadania. O filósofo Slavoj Žižek, ao descrever a “selva de Calais”, refere que são tratados como se fossem não humanos. “Não são culpados de nada, acusados de nada, estão ali e vivem. E a prova de que vivem é que alguns morrem.” Mas também para quem tem um dos piores passaportes do mundo (Síria e Afeganistão) e quer movimentar-se — por negócios ou por questões académicas, por exemplo — as fronteiras estão fechadas. Não é que tenha feito alguma coisa e pode até não viver nesse país há anos. A nacionalidade não se apaga com facilidade. Mas o passaporte é o resultado de uma “negociação geopolítica que passa por permitir ou não uma hospitalidade condicional” e resultado das questões de segurança do país que acolhe, e que permite acesso a direitos e cidadania controlados. É o cruzamento do pessoal e do político: promete “oportunidades de independência e mobilidade”, mas é “uma ferramenta dos governos para vigilância e ostentação do poder do Estado”. Hoje pode ter-se um “passaporte bom”, mas o “corpo errado”. Pode ter-se um passaporte da UE, mas basta um nome muçulmano para saber que a entrada nos EUA será complicada. A cor da pele/nome retira poder à cor da capa do passaporte. Torna o detentor do passaporte “suspeito” de não o merecer. O nosso passaporte, o passaporte português, está no grupo dos quatro mais poderosos do mundo. E, no entanto, o Estado português tem permitido que se faça todo o tipo de negociatas com ele. A ideia bem-intencionada dos judeus sefarditas foi completamente corrompida — basta ver o caso do oligarca Abramovich. No Brasil, foi recentemente desmantelado um esquema de venda de passaportes que até metia “mortos ressuscitados” e a famigerada organização criminosa Primeiro Comando da Capital — a procura é imensa. As firmas de “venda de segundos passaportes” têm Portugal e Espanha como locais onde o passaporte é possível comprar após determinadas formalidades (dentro da legalidade). Não se trata só de milionários com passaportes “maus”, mas de um sinal de estatuto, nomeadamente dos multimilionários americanos que não querem ter a sua mobilidade restringida pelas decisões políticas do seu país ou serem “alvos” ao mostrarem um passaporte EUA. É muito melhor um português. Esta é uma nova cidadania sem identidade. Não conhecem a bandeira, o hino, a língua ou quem foi o primeiro rei. É apenas a prova de como até a noção pomposa de Estado-nação, “nação valente, nobre povo”, se tem deixado vender pela compra de um apartamento de luxo ali para Cascais e uns anos de espera. E ainda está no menu das firmas especializadas de advogados internacionais. Agora basta investir nuns fundos de investimento.