Opinião

Trumpismo doméstico

Importa eleger lideranças políticas que garantam que, como afirmava o recentemente falecido Henry Kissinger, as instituições não desfaleçam e as nações não se arrisquem ao desastre. Mas para isso é necessário termos a capacidade de combater o trumpismo doméstico

A nossa democracia vive tempos estranhos. Mas este não é um fenómeno doméstico: o mundo tem mudado, a perceção pública da política tem mudado e a agitação mediática em torno das lideranças políticas e das suas propostas tem sido uma constante pelo mundo fora, muito alimentada pelo crescimento dos populismos.

O liberalismo humanista, aquele que defendeu a limitação dos poderes governamentais com base na lei e que criou instituições para proteger a liberdade e os direitos dos cidadãos, está ameaçado um pouco por todo o lado. O mundo nunca foi imune a radicalismos, de esquerda ou direita, mas nas últimas duas décadas, aquilo que hoje se chama populismo da extrema-direita tornou-se uma presença constante no debate político, também na Europa. Muitas vezes de forma simplista, porque não está apenas associado à onda xenófoba exacerbada pela crise migratória, mas também a um anti-europeismo centrado na demarcação de fronteiras nacionais e culturais e, em geral, a uma leitura secundarizada do papel dos direitos humanos na sociedade. Todos os dias assistimos a retrocessos nesta que foi durante muito tempo a linha de base das democracias ocidentais modernas. Lideranças políticas como Viktor Orbán na Hungria, Jaroslaw Kacznski na Polónia, Jair Bolsonaro no Brasil, Erdogan na Turquia, Donald Trump nos Estados Unidos da América, Javier Milei na Argentina e muitos outros, venceram nas urnas o combate eleitoral democrático e têm caminho aberto para atacarem as instituições em que assentam os seus sistemas políticos.

Também por cá, a extrema-direita doméstica, brande as suas soluções simples para problemas complexos, prometendo proteger o povo contra ameaças mais ficcionadas do que reais. Na reunião realizada em novembro em Lisboa da família política Identidade e Democracia, em que participou o líder do Chega, foram abordados os temas das migrações, da segurança e dos desvios orçamentais que os partidos europeus de extrema-direita se propõem combater para “viver numa Europa de paz e de liberdade”, como se esta não o fosse já. O que gera perplexidade é que parte da nossa população parece acreditar num discurso que diz tudo e o seu contrário, evidenciando uma crescente falta de identificação com os partidos e propostas tradicionais.

Confesso a minha intranquilidade perante a facilidade com que este discurso faz caminho. E perante o facto de termos chegado a este ponto, em que parece normal a democracia estar a implodir, porque as pessoas “exigem uma mudança”. Uma mudança em que sentido? A resposta é dura. Recordei-me da análise que Mário Vargas Llosa, no “O apelo da tribo”, fez da obra de Jean-François Revel, “Como terminam as democracias”. Este autor defendia que, salvo se houver uma mudança radical nos países liberais, a democracia terminará enquanto regime político e voltaremos a cair no despotismo. Agora o “inimigo” da democracia é algo mais difícil de combater do que o comunismo soviético, mas as democracias “por apatia, inconsciência, frivolidade, cobardia ou cegueira”, parecem continuar a ser responsáveis por colaborar com o seu adversário populista para caminharem para o abismo. Com uma visão que se mantém atual, o autor questionava-se se haverá ainda alguém no Ocidente que “acredite que a democracia serve para alguma coisa, a julgar pela forma como os seus intelectuais, dirigentes políticos, sindicatos, órgãos da imprensa autocriticam o sistema, mantendo-o sob uma penalização contínua e impiedosa”, muitas vezes superficial e injusta.

Já por mais de uma vez citei Francis Fukuyama, que reflete sobre a forma como os descontentamentos gerados pelos seus resultados práticos e não pela sua doutrina, levam tanto a extrema direita como a esquerda radical a exigir que o liberalismo democrático seja substituído por um sistema diferente. Mas a verdade é que, enquanto doutrina política, contrariamente ao que afirmou Vladimir Putin, a democracia liberal não é um sistema obsoleto, continua a apresentar razões práticas, morais e económicas apelativas para as pessoas, em particular as que tiveram a experiência de viver em sistemas políticos autocráticos.

Importa conseguir passar essa mensagem de forma clara aos cidadãos. Importa eleger lideranças políticas que garantam que, como afirmava o recentemente falecido Henry Kissinger, as instituições não desfaleçam e as nações não se arrisquem ao desastre. Mas para isso é necessário termos a capacidade de combater o trumpismo doméstico. Recordando aos nossos líderes políticos que a democracia é plural, que cada cidadão é dono do seu voto e que é com propostas honestas e credíveis que se mobilizam as pessoas. E recordando aos nossos concidadãos que a política é nobre, não é um mero embate clubístico, e que todos devemos orientá-la por elevados padrões éticos, pois só assim poderemos conduzir a sociedade na via do progresso.