Opinião

Em busca da virtude cardeal perdida

Caricaturar por caricaturar as instituições democráticas, sem que isso corresponda a um verdadeiro combate político de ideias, só as degrada, não as revitaliza. E agrava o fosso, cada vez maior, entre as pessoas e a política

No último artigo, escrevi que se queremos viver numa democracia temos de participar ativamente na vida democrática. Mas será igualmente pertinente não esquecer que a democracia é feita de instituições. E se queremos preservar as instituições democráticas, temos de as respeitar.

Desde há algum tempo que têm sido frequentes na Assembleia da República (AR) vozes alteradas, provocações a deputados e membros do governo e linguagem a roçar a inconveniência até com o presidente da casa da democracia, a segunda figura institucional do Estado. Episódios que têm em comum o facto de nada terem de debate político, mas de puro ato circense para captar a atenção dos descontentes com a vida e trazê-los para as fileiras dos supostos descontentes com os representantes eleitos e, em última análise, com o próprio regime democrático.

Qual o diagnóstico que podemos fazer da saúde da democracia quando aceitamos que é normal, em vez de afirmarmos ideias para os problemas das pessoas e combatermos por elas com lisura e argumentação democrática, os nossos parlamentares produzam tiktoks com música da pantera cor de rosa sem uma única ideia a defender? Os debates intensos na defesa de ideias não são debates que apoucam os adversários e insultam aqueles que não pensam da mesma forma, mas sim debates em torno de visões diferentes, de caminhos diferentes, de métodos diferentes. Ao longo dos tempos, brilhantes parlamentares demonstraram isto mesmo; que é possível debater ideias sendo firmes nas palavras mas com uma lisura irrepreensível na postura. Agora parecemos aceitar como novo normal aqueles que aproveitam o espaço das instituições para as distorcer e subverter. Deixando margem para um pensamento inquietante: será que a democracia está a criar margem para se auto-destruir?

As instituições têm de ser eficazes para lidar com os problemas das sociedades modernas. Por isso, se não forem adequadas, têm de ser renovadas. Mas caricaturar por caricaturar as instituições democráticas, sem que isso corresponda a um verdadeiro combate político de ideias, só as degrada, não as revitaliza. E agrava o fosso, cada vez maior, entre as pessoas e a política.

As instituições formais, como os aparelhos político-institucionais, são tendencialmente estáveis mas isso não significa que não possam ser adaptáveis. Tal como há muito perceberam sociólogos, economistas e politólogos, a mudança institucional existe, quer nas instituições formais, quer nas instituições informais, como os códigos de comportamento. Se tomarmos como boa a ideia que os indivíduos e as estruturas sociais são mutuamente constitutivos, estando ligados numa espiral de mútua interação e interdependência, como afirma Geoffrey Hodgson, aquilo a que estamos a assistir parece ser uma mudança no código de comportamento político, na civilidade e razoabilidade do discurso (ou, como diriam os gregos clássicos, na moderação, uma das virtudes cardeais), atributos necessários à deliberação democrática. O que pode ter efeitos imprevisíveis nas instituições democráticas formais e na perceção que as pessoas delas têm.

Estas manifestações de hostilidade aos representantes eleitos podem transformar-se facilmente em hostilidade à própria democracia que torne inevitável a recessão deste regime. É isso que devemos evitar a todo o custo, a queda do liberalismo humanista, um amplo chapéu que, como refere Francis Fukuyama (Liberalismo e seus descontentes), alberga um vasto leque de opiniões políticas que concordam na importância central da igualdade de direitos individuais, do primado da lei e da liberdade. Não podemos permitir que os populismos de esquerda e de direita convençam os cidadãos que o sistema não é capaz de se autorreformar, abrindo a porta a derivas autoritárias, travestidas ou assumidas.

É no quadro do sistema que reside a chave para a sua transformação. Quando falamos em temperar a democracia representativa com a democracia participativa é disso que estamos a falar. Trazer as pessoas para os centros decisórios, para que, com informação cabal sobre os temas que geram descontentamento, possam participar nas mesmas. É urgente assumir este desígnio que a nossa constituição prevê. Porque se o sistema não criar espaço para a reinvenção, corre o risco de definhar e parecer irremediavelmente desadequado, sobretudo para as novas gerações. Acabando por ruir, tal como outras construções da humanidade que se supunham eternas.