Opinião

As três barbáries

No campo da direita, há demasiadas pessoas indisponíveis para qualificar a resposta de Israel como aquilo que ela é. Como não faltam, no campo da esquerda, aqueles que se retraem na hora de qualificar de pogrom a carnificina que o Hamas executou em outubro e de identificar a verdadeira natureza dessa organização. Estamos condenados a uma infindável recaída nas falácias e nos sofismas costumeiros

A morte de palestinianos é instrumental para o Hamas. Ela serve o desígnio jihadista de atiçar o mundo árabe contra o Estado hebraico, e, pelo caminho, contra as democracias ocidentais. O pogrom de 7 de outubro também teve como propósito levar o exército israelita a trocar o seu código de ética pelo Código de Hamurabi – escorado na lei de Talião. Transtornado pela dor e pela raiva, Israel caiu na armadilha. Está a exercer o seu direito à defesa de forma desproporcional e cruel. Estremecemos perante o cerco medieval à população de Gaza. São estarrecedoras as filmagens de prédios habitacionais pulverizados a partir dos céus, como formigueiros ou castelos de areia desfeitos por alguma bota colossal.

Moshe Halbertal é um distinto professor de Direito e de Filosofia da Universidade de Jerusalém que foi coautor do código de ética do exército israelita – o Roua'h Tsahal. Numa entrevista de 2020, Halbertal, não sem algum humor negro, dá um exemplo concreto de uma ética aplicada ao teatro de guerra: se um atirador se aloja numa casa de civis e dispara a partir daí, o soldado que o combate poderá ter de arrombar a porta da habitação ou até de esburacar uma parede, mas isso não lhe dá o direito de escaqueirar a televisão.

O soldado só pode usar força letal contra quem constitua uma ameaça: o terrorista, mas não, por exemplo, o pai deste – e esse princípio deve perseverar mesmo quando o terrorista procura, deliberadamente, baralhar a distinção entre civis e milicianos.

Veremos se as tropas hebraicas serão capazes de honrar esses princípios à medida que se adentrarem na faixa de Gaza. Acreditemos que sim. O problema é que esse código ético não pode ser diferido. A ética não se procrastina. Mas o bombardeamento de casas onde vivem crianças, idosos, doentes, pessoas acamadas, equivale a uma moratória sobre a ética e sobre a decência.

Acaso as forças aéreas, por contraponto com as forças terrestres, estão desobrigadas daqueles preceitos? Fazer chover bombas sobre zonas habitacionais aniquila qualquer perspetiva de proporcionalidade, porque, em nome de um "risco zero" para os profissionais da guerra, riscam-se do mapa prédios inteiros, e, com estes, civis inocentes. O aviso prévio não tem o condão de repor essa ética: são muitos os fatores que podem ditar a sua ineficácia.

No campo da direita, há demasiadas pessoas indisponíveis para qualificar a resposta de Israel como aquilo que ela é. Como não faltam, no campo da esquerda, aqueles que se retraem na hora de qualificar de pogrom a carnificina que o Hamas executou em utubro e de identificar a verdadeira natureza dessa organização. Estamos condenados a uma infindável recaída nas falácias e nos sofismas costumeiros. Só isso explica que se possa advogar a solução de “dois Estados” omitindo que o Hamas não admite uma coexistência com Israel mas, bem pelo contrário, preconiza a sua destruição e a instauração de um Estado islâmico regido pela sharia. Na Carta do Hamas, de 1988, lemos que “não há solução para a causa palestiniana senão pela via da jihad” e que as iniciativas internacionais são “uma perda de tempo”, “formas de arbitragem dos infiéis na terra dos muçulmanos” (art.º 13).

Sejamos claros: a esquerda, hoje, tem uma especial obrigação de combater as manifestações de antissemitismo que recrudescem por todo o lado. Figuras como Jean-Luc Mélenchon têm sido condescendentes com a assimilação do mais obscuro islamismo a movimentos de resistência – “ofensiva armada de forças palestinianas”, chamou ao 7 de outubro. No Reino Unido, Jeremy Corbyn deu rédeas ao antissemitismo no seio do Labour. Já se tinha notabilizado por designar como amigos os membros do Hamas e do Hezbollah, ou por pactuar com a propaganda do regime iraniano.

Noutras franjas da esquerda, olvidaram-se de como a revolução bolchevique foi acusada de ser orquestrada pelos judeus, com Lenine e Trotsky a servirem de seus fantoches. A presença de judeus no Comité central não impediu os semitas de serem vítimas de pogroms na Rússia revolucionária, muitos deles perpetrados pelo Exército Vermelho, como o de Gloukhov, em 1918. Quem sabia alguma coisa do assunto era o filósofo judeu Vladimir Jankélévitch, que, nascido na Rússia, teve de fugir com os pais aos pogroms vermelhos, para se radicar em França. Em 1967, escreveu ele: “o anti-sionismo é o antissemitismo justificado e finalmente ao alcance de todos. Autoriza que sejamos democraticamente antissemitas. E se os próprios Judeus fossem nazis? Seria maravilhoso. Não seria necessário ter pena deles: teriam merecido a sua sorte”.

Uma parte da esquerda, se não confunde judeus com sionistas, também não se esforça o suficiente por destrinçar as duas categorias. Ao lado do antissemitismo militante e violento, há um antissemitismo transportado pela omissão, pela hesitação ou por declarações dúbias. À esquerda, só há uma postura possível: condenar a barbárie do terrorismo islâmico, a barbárie dos bombardeamentos em Gaza e a barbárie do antissemitismo.