Há dias fui ver o filme Golda, o que neste momento me parece premonitório face à violência inqualificável dos últimos dias na região. Não quero falar do filme pelo tema da guerra, mas pela principal impressão que me ficou: a coragem de Golda Meir num momento crucial da história do seu país, durante a invasão que seria conhecida por Guerra de Yom Kippur. Sentido de Estado e coragem para tomar decisões arriscadas, que marcaram o desfecho do conflito.
Mas não é só perante a guerra que se revela a coragem que faz um líder. Uma outra mulher, cujo centenário de nascimento foi recentemente assinalado, teve igualmente um percurso marcado pela sua coragem cívica e política: Natália Correia. Figura multifacetada e inúmeras vezes controversa, marcou a literatura, a sociedade e a política, tendo exercido a função de deputada com o mesmo ímpeto para mudar o mundo que atribuía à poesia: “… Há que transformar a nossa sociedade se nos queremos salvar”. E foi esse ímpeto que a levou a assumir as suas divergências com o Estado Novo ou, já como deputada, no primeiro debate parlamentar dedicado à despenalização da interrupção involuntária da gravidez.
Nos últimos dias, também assistimos ao anúncio do Prémio Nobel da Paz de 2023 à ativista iraniana Narges Mohammadi, pela sua luta – que lhe trouxe enormes custos pessoais – pelas mulheres do Irão contra a opressão do regime teocrático e pela promoção dos direitos humanos e da liberdade de todos. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen afirmou que este "Prémio Nobel da Paz reconhece a luta corajosa e nobre das mulheres iranianas que desafiam a opressão". E esta é outra mulher corajosa: podemos não concordar com toda a abordagem que defende para a União, mas importa reconhecer a coragem da primeira mulher a ser presidente da Comissão Europeia. Terá ficado na memória de todos a atitude firme com que lidou com a desconsideração da diplomacia turca no episódio que ficou conhecido como Sofagate. E todos reconhecem a assertividade com que lidera a Comissão. No passado mês de setembro, no discurso sobre o Estado da União 2023 perante o Parlamento Europeu, o último do seu mandato, recordou o caminho que a Europa tem percorrido, entre outras coisas, com um Pacto Ecológico Europeu como elemento central da economia, com a proteção pioneira de direitos digitais ou com o instrumento Europeu de Recuperação que combina 800 mil milhões de euros de investimentos e reformas e cria empregos dignos. Como afirmou, “Juntos, mostrámos que, quando a Europa é corajosa, essa coragem traduz-se em resultados.”
Todas as pessoas que referi são mulheres, mas é por acaso. A coragem não tem género, mas, mais do que isso, a coragem não passou de moda. Continua a ser um dos atributos centrais de um político. Sem coragem traduzida em atos não existe credibilidade. Sem credibilidade não há confiança. E sem a confiança dos cidadãos as instituições democráticas estão condenadas ao insucesso.
Enquanto sociedade, temos muito a refletir acerca deste tema. Há uns meses, os resultados de uma sondagem ICS/ISCTE sobre a satisfação com os principais aspetos da vida em Portugal, revelava um país que “não gosta do que vê ao espelho”, com os portugueses a assumir frustração com as políticas públicas, com falta de confiança no Parlamento, Governo e partidos políticos. Mas as pessoas também consideram que a população em geral deve ter mais influência nas decisões políticas e têm disponibilidade para novos mecanismos de participação. Do outro lado do espelho, parece estar um desejo: a procura de proximidade às decisões e de poder real para as conformar. Um desejo que implica que a coragem esteja mais distribuída: não só pelos representantes eleitos e pelos políticos com funções executivas, mas por cada uma das cidadãs e dos cidadãos, capazes de debater os temas que interessam com honestidade intelectual e respeito pelas diferenças. Esta atitude é sinal de maturidade democrática e da mais elementar coragem cívica e política. É esta coragem que deve ser demonstrada no debate do próximo Orçamento do Estado, um excelente momento para exercer os direitos e deveres cívicos fundamentais de participação esclarecida, numa discussão vigorosa, mas consciente, sobre as prioridades para o nosso país. Uma democracia viva e participada exige políticos que inspirem, envolvam as pessoas nas decisões e assumam escolhas corajosas que respondam aos problemas do presente, mas que também garantam o futuro.