Infelizmente há alturas em que só apetece dizer “anda tudo louco”.
Mas também por vezes surge uma luz no meio das trevas e ainda há quem mereça elogios.
Vamos a isso, então.
MP: A LOUCURA DAS LOUCURAS
O que se passou com as buscas em casa de Rui Rio, de empregados do PSD e em sedes desse partido, justifica muito fazer algumas reflexões.
A primeira reflexão, é para que eu me junte ao coro de tantos (com exceção da IL e do Chega), que criticaram duramente o que se passou, por ser inadmissível e intolerável.
São tantos os motivos que prefiro realçar apenas alguns:
- mais uma vez, informação foi ilegalmente passada aos “amiguinhos” dos media e vai ficar impune;
- o espalhafato que o MP e a PJ montaram causou danos reputacionais dificilmente reparáveis;
- é pelo menos grave incompetência o facto do MP fazer isto três anos depois de uma denúncia anónima, deixando avolumar um problema sem necessidade, e limitando ao tempo e ao partido referido na denúncia anónima o que era comportamento público, recorrente e generalizado;
- é escandaloso vasculhar, em vez de perguntar, para obter informação que aliás não seria passível de ser destruída sem deixar rastos;
- é inconcebível a opção por não alertar a Assembleia da República para que estas alegadas ilegalidades que resultam de interpretações normativas controversas pudessem ser analisadas e corrigidas, se fosse caso disso;
- é chocante o “arrastão” de todo o arquivo informático de cidadãos e de um partido, sem qualquer necessidade ou proporcionalidade.
Em segundo lugar, é preciso realçar que acontece há décadas com cidadãos, entidades e empresas o que (e muito bem) agora se estigmatiza.
Apesar disso - honra seja feita a Rui Rio, por ser uma das raras exceções –, a classe política e os partidos nunca tiveram a coragem e a decência de estigmatizar este tipo de comportamentos da investigação criminal ou de apoiar outros que, como eu desde logo quando era Bastonário, o denunciávamos.
Em terceiro lugar, tudo isto confirma que no MP muitos andam em roda livre, em nome da errada teoria de que “os” Procuradores da República gozam de autonomia constitucional e legal, quando esse atributo é “da” Procuradoria Geral da República, um corpo hierárquico.
Veja-se o que diz a Constituição: “O Ministério Público goza de estatuto próprio e autonomia” (artigo 219º, nº 2) e “os agentes do Ministério Público são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados” (artigo 219º, nº 4).
Tal como estão as coisas, qualquer procurador pode continuar impunemente a desencadear vendavais, como aquele a que se assistiu.
Realmente, a interpretação que grassa nessa entidade, como disse o exemplo histórico de incompetência que é Lucília Gago sem que lhe tremesse a voz, é que “não cabe à procuradora-geral despachar processos, definir estratégias investigatórias nem os seus tempos ou os seus modos”, pois cada processo “tem titulares, magistrados responsáveis pela investigação que, obviamente, seguirão uma linha e pô-la-ão em prática”.
Como tantas vezes disse e escrevi, os advogados – e não os procuradores – é que são independentes, e sem hierarquia estes últimos tornam-se em advogados que não têm de prestar contas a ninguém.
Em quarto lugar, isto é muito grave. Ninguém pode garantir que cada procurador é um santo, não submetido a interesses, não instrumentalizado. Prova disso é que as condenações por corrupção já entraram pelo MP a dentro, como o fizeram hackers, e até cardeais têm simpatia partidárias pelo que se deve ponderar que no MP não seja diferente.
UMA LUZ NO MEIO DAS TREVAS?
Mas há pior e há melhor, até alguma esperança.
Depois de um destes arrastões, toda a vida dos cidadãos, empresas, instituições e entidades estatais, fica à mercê não se sabe de quem. E isso acontece sem nenhuma necessidade investigativa que não seja o ter-se feito sempre assim, ser mais cómodo e sabe-se lá que mais.
Por tudo isso, quero registar com muito agrado as dezenas de intervenções críticas, de que realço apenas as seguintes:
- Como afirma o Diretor do “Público”, roxo de razão e sendo jornalista com coragem, é “inexplicável” o silêncio da PGR;
- Francisco Assis, um homem sereno e moderado, também pede ao Presidente da República, ao primeiro-ministro e à Procuradora-geral da República que se pronunciem;
- Revelando a sua independência e coragem, Assis afirma que há um “ataque à democracia” e ao “Estado de direito”, e realça a “associação espúria” entre setores judiciários e o mundo mediático, que “até adquire contornos criminosos, que põe em causa regras basilares do Estado de Direito”;
- Outro homem sério e sereno, o líder parlamentar do PSD, Miranda Sarmento, não tem também papas na língua: “Não podemos continuar com esta Justiça”;
- O Presidente da Assembleia da República exigiu explicações à PGR e disse – com coragem - que “foi cometido um crime transmitido em direto pelas televisões”;
- Finalmente, a entrevista de Rui Rio à SIC foi um grito de alma que num país que prezasse as Liberdades e os Direitos Fundamentais continuaria a ribombar até que se agisse;
- E finalmente Carlos Alexandre (o juiz de instrução inquisitorial, que recusou sempre ser o Juiz das Liberdades que devia ser) ao fim de 20 anos vai sair do “Ticão”. Se não tiverem ficado clones, talvez os Direitos Fundamentais deixem de estar por lá em prisão preventiva.
Finalmente, acho essencial que isto não possa mais uma vez ficar em águas de bacalhau, sempre com o mantra populista (usado, et pour cause, por alguns jornalistas “amiguinhos” ou ingénuos que também existem) que criticar ilegalidades, abusos e crimes na investigação criminal é fazer o jogo dos criminosos.
Lutei toda a vida pela autonomia do Ministério Público, como estrutura hierarquizada e não como coleção caótica de procuradores à rédea solta. Venho tendo desilusões cada vez maiores.
Por isso, do alto da minha irrelevância, quero dizer que esta é a única oportunidade que vejo de transformar abusos em sensatez, e rever até ao final de 2023 o Estatuto do Ministério Público para se voltar ao modelo constitucional, sem subterfúgios.
Se isso não acontecer, passarei a defender o modelo norte-americano (e não só), em que o Ministro da Justiça assuma os poderes e os deveres do PGR, para que de uma vez por todas, alguém seja responsável, pelos abusos, violações do Estado de Direito e por crimes-instrumento da investigação criminal.
MAS HÁ MAIS LOUCURAS…
Nesta última semana assistimos a mais loucuras, que a falta de tempo me obriga a resumir, e infelizmente a deixar de fora algumas outras:
- O Secretário de Estado da Defesa foi constituído arguido por indícios de corrupção – mais um… - e o Primeiro-Ministro mais uma vez assobia para o lado e desvaloriza;
- O antigo Presidente da Câmara de Espinho, Pinto Moreira, foi acusado de quatro crimes de corrupção e cinco de prevaricação e o PSD também assobia para o lado, afinal mantendo-o na sua bancada;
- Marcelo Rebelo de Sousa substituiu o Presidente de República, em audiências com partidos na passada 6ª feira e ontem, e dedicou-se a fazer análise política com um desdobramento de personalidade que me fascina, mas que prejudica seriamente o Presidente da República e o funcionamento das instituições;
- A Comissão Independente Partidário está a tornar-se numa telenovela, um dos episódios sendo fazer ajustes diretos pois não há tempo para concursos … que podiam ter sido lançados há meses. Ter sido elogiada por Galamba não é bom sinal …
- Mais de 2 anos depois de aqui ter dado eco à revelação do Foro da Cidadania Lx sobre o vandalismo e furtos no Palácio Burnay na Junqueira, o Foro volta a denunciar que tudo continua na mesma, ou seja, ainda pior;
- O Estado tem em seu poder estudos, que não divulga, sobre os vistos gold e sobre os contratos não submetidos ao Novo Regime do Arrendamento Urbano do “Observatório da Habitação e da Reabilitação Urbana”, determinado no Orçamento de Estado de 2022, no qual se deve “proceder à identificação e análise comparada de práticas internacionais em matéria de regulação do mercado habitacional, avaliando os seus objetivos, efeitos e resultados; apresentar um modelo global e recomendações quanto à adequação à realidade portuguesa de tais práticas; proceder ao diagnóstico da situação atual do mercado do arrendamento habitacional, identificando os constrangimentos decorrentes da aplicação da regulamentação vigente e apresentar um modelo global e linhas orientadoras para a revisão e simplificação do respetivo regime legal”.
- Finalmente, cereja no bolo, o Presidente da República censurou (bem e com fortes argumentos) que no final do Secundário deixe de haver exame de Matemática, para quem não vá para certos cursos superiores, mas promulgou (mal) esta medida que contribui para a degradação da formação dos jovens para os desafios do Século XXI.
Tudo isto tem em comum a disfuncionalidade, a indiferença perante a Cidadania, o facilitismo, a leviandade, a ligeireza com que as mais altas entidades do Estado tratam ou não tratam do que lhes compete.
O PAPA FOI A CANOSSA, NA CHINA?
Lê-se e não se acredita. O Vaticano fez um acordo em 2018 com a China, que ressuscitou práticas antigas, para que o Poder político (leia-se aqui o Partido Comunista Chinês) tenha uma palavra a dizer na escolha dos bispos.
Em outubro de 2022 foi renovado o acordo e logo um mês de depois a China violou-o acordo, nomeando um bispo para uma diocese que o Vaticano não reconhece e sem sequer consultar a Igreja.
Agora foi pior. A China nomeou um bispo para Xangai, onde se concentra a maioria dos católicos, sem ouvir a Santa Sé.
A resposta de Roma? Foi expressar “surpresa” e “pesar”, afirmar por understatement que “esta forma de proceder não parece corresponder ao espírito de diálogo e colaboração estabelecidos entre o Vaticano e a China” … e o Papa "decidiu regularizar a anomalia canónica criada em Xangai para o bem da diocese e um melhor exercício do ministério pastoral do bispo".
Vem aí dentro de dias o Papa. Seria talvez uma boa ocasião para lhe ser perguntado se este tipo de intervenções do Poder Político e esta recusa de sequer cumprir o acordado é privilégio chinês ou se a Igreja Católica voltou ao tempo da Monarquia Absoluta e das ditaduras europeias do século passado.
Permita-se, no entanto, a um católico que afirme que ser fraco com os fortes e forte com os fracos não costumava ser a palavra evangélica e que sempre que uma instituição levar o pragmatismo ao desrespeito dos seus valores essenciais acaba mal.
E a esse propósito não posso deixar de me lembrar de que em Canossa, em janeiro de 1077, o Papa Gregório VII só levantou a excomunhão ao poderoso Henrique IV, do Sacro Império Romano-Germânico, depois de este fazer a seguinte penitência: permanecer três dias e três noites, de joelhos, às portas do castelo, com frio e neve, vestido como um monge, e descalço.
E a verdade é que depois disso nunca mais se recompôs o poder religioso do imperador e se reforçou o poder do papado.
O ELOGIO
Desta vez o elogio é coletivo e refere-se aos socialistas moderados (alguns chamam-lhe “Ala dos Namorados”, mas eu acho que são “Soaristas”), e em concreto aos que têm dado a cara com coragem.
Nos últimos dias, por exemplo, Francisco Assis, Álvaro Beleza, Adalberto Campos Fernandes, Sérgio Sousa Pinto, Jorge Seguro Sanches deram entrevistas ou escreveram textos em que me revi quase a 100%, naturalmente no que não era o apoio inevitável ao Governo.
Dirão alguns no PS que o meu elogio será mau sinal para eles. Quanto a isso, permitam-me partilhar o que há mais de 40 anos e sobre a União Soviética me disse Maria Barroso: “Dr. Júdice, estou totalmente de acordo com o que tem dito. Alguns até me chamam reacionária no PS, mas eu não me importo”.
E, do meu lado, a alguma Direita responderei: “não me importo que critiquem, pois gostaria de ver estes políticos competentes e moderados a governar”.
LER É O MELHOR REMÉDIO
De novo proponho livros que sobrevivem ao teste do tempo, neste caso ambos de 1984.
O primeiro, “A Insustentável Leveza do Ser”, de Milan Kundera (edição de bolso BIS) e o segundo outra obra prima, “Mazurca para Dois Mortos”, do prémio Nobel, Camilo José Cela (Quetzal).
Ao propô-los, inspiro-me naturalmente também na Primavera de Praga e no facto de outro galego passar a ser provavelmente Presidente do Governo espanhol daqui a dias.
A PERGUNTA SEM RESPOSTA
A pergunta hoje é destinada a quem faz a primeira página do “DN”, em que hoje a manchete era “topo da carreira barrado a metade da função pública”, e aos sindicatos que inspiraram com o seu combate essa frase.
Temos 741.698 funcionários públicos (dados de junho de 2022, pois não encontrei mais recentes), pelo que a pergunta interessa a mais de 370.000 cidadãos.
Aqui vai ela: sabemos que nem todos os padres chegam a papas, nem todos os militares a general, nem todos os professores universitários a catedráticos, nem todos os futebolistas a Ronaldo.
Porque carga de água é que se admiram que assim seja com (outros) funcionários públicos? E a notícia não devia ser antes a insensatez de estratégias sindicais a pedir o impossível?
Ou, dito de outra forma, será que o Governo não deveria explicar que a expressão “o céu é o limite” é na melhor das hipóteses (fraca) poesia, como norma uma frase tonta e na pior hipótese a melhor maneira de desanimar os melhores e de tornar azedos os piores?
A LOUCURA MANSA
Vão acabar os exames de Matemática no final do Secundário, como já referi. Nem por acaso, quase 60% dos 95000 alunos tiveram negativa no exame do 9º ano e mais de 3% conseguiram a proeza de ter 0 valores.
Um bom texto de Clara Viana no “Público” da passada 4ª feira passou quase desapercebido. E é pena.
Loucura nisto? Várias: que para o Século XXI a solução seja acabar com o exame a Matemática no final do Ensino Secundário, que estes estudantes não tenham feito exames do 5º e do 8º ano, a opção radical absurda de fechar as escolas por causa da COVID, a prioridade de tantos professores às suas greves (chegando ao ponto de marcarem greves para os dias de exames), o facilitismo reinante.
E la nave va, como disse Fellini...