Opinião

O abuso de menores é um crime, não é uma doença

Aceito e defendo tudo o que puder ser disponibilizado para proteger os menores de um crime. Não aceito, e lutarei contra isso, que um crime seja confundido com uma patologia ou que a sua “patologização” lhe sirva de atenuante ou de desculpabilização para um ato hediondo

A Diretiva 2011/93/UE diz respeito “à luta contra o abuso sexual e a exploração sexual de crianças e a pornografia infantil” e foi muito falada há uns anos, quando Paula Teixeira da Cruz, então ministra da Justiça, a trouxe à colação para justificar a ideia de “denunciar publicamente” os “pedófilos”. Escrevi na altura, no blog Jugular, que “a perturbação pedoebofílica, habitualmente designada por pedofilia, é uma perturbação parafílica; ser pedófilo não implica cometer o crime de abuso de menores; há abusadores de menores que não são pedófilos. (…) Uma perturbação parafílica é uma parafilia que causa sofrimento ou prejuízo ao próprio ou a terceiros. Sinalizar uma parafilia - de acordo com a natureza das pulsões, fantasias ou comportamentos - não significa diagnosticar uma perturbação parafílica - assente no sofrimento e no prejuízo do próprio e/ou de terceiros.”. Assinalei as diferenças entre a perturbação psiquiátrica – perturbação pedoebofílica ou pedófilia – e o crime – abuso de menores.

Continuando a usar histórias recentes, não tenho memória de ter visto a defesa da necessidade de tratamento psiquiátrico ou psicológico no processo Casa Pia, pelo menos usando como justificativo da necessidade de tratamento o crime de abuso de menores.

Voltando à Diretiva 2011/93, dela consta que “O abuso sexual e a exploração sexual de crianças, incluindo a pornografia infantil, constituem violações graves dos direitos fundamentais, em especial do direito das crianças à proteção e aos cuidados necessários ao seu bem-estar”, referindo o seu Artigo 1º que é seu propósito estabelecer “regras mínimas relativas à definição dos crimes e sanções no domínio do abuso sexual e da exploração sexual de crianças, da pornografia infantil e do aliciamento de crianças para fins sexuais. Introduz igualmente disposições para reforçar a prevenção desse tipo de crimes e a proteção das suas vítimas.” - artigos 19º, “Assistência e apoio às vítimas”, e 24º, “Programas ou medidas de intervenção, a título voluntário, durante ou após o processo penal” (sublinhados meus, como todos ao longo deste texto).

Um comportamento não se trata, ajuda-se a melhorar, corrigir ou tornar mais adaptativo se for essa a vontade de quem o tem. Tão pouco traços disfuncionais da personalidade configuram, por si só, uma perturbação formal da personalidade passível de ser considerada uma entidade nosológica nos sistemas classificativos internacionais de doença mental, nem serve de atenuante para a determinação da imputabilidade do sujeito que cometeu um crime. O uso de psicofármacos nas perturbações da personalidade dirige-se ao tratamento de sintomas específicos, se existirem, não da perturbação em si, e as abordagens psicoterapêuticas estruturadas e com eficácia baseada na evidência científica são usadas se a pessoa estiver disponível para integrar o processo terapêutico.

Depois de ter ouvido a Conferência Episcopal, então, muito poderia discorrer sobre traços disfuncionais da personalidade. Adiante.

Não estou a opor-me nem a negar a disponibilização de tratamento psiquiátrico e/ou psicológico a pessoas que cometeram o crime de abuso de menores. Tal como qualquer outra pessoa, têm todo o direito a tê-lo se necessitarem e quiserem, mas a razão para isso não é terem cometido um crime de abuso de menores.

Tão pouco me oponho, mal seria, ao desenvolvimento de estratégias preventivas de intervenção. Recentemente li um post (público) no FB do médico Rui Ferreira Carvalho que dava nota da disponibilização, em Portugal, de “um programa de intervenção cognitivo-comportamental destinado a pessoas com impulsos sexuais envolvendo crianças, o PREVEN IT. O programa foi originalmente desenvolvido no Instituto Karolinska (…) Esta intervenção decorre exclusivamente no formato online, gratuitamente e de forma anónima.”. É um programa de nove semanas que se destina a pessoas preocupadas com seus impulsos sexuais envolvendo crianças. As autoridades poderão incentivar à participação mas não poderão saber se o suspeito se inscreveu, se está a participar ou quais os resultados da intervenção.

Aceito e defendo tudo o que puder ser disponibilizado para proteger os menores de um crime. Não aceito, e lutarei contra isso, que um crime seja confundido com uma patologia ou que a sua “patologização” lhe sirva de atenuante ou de desculpabilização para um ato hediondo. Excluindo o caso muito particular do internamento compulsivo previsto na Lei de Saúde Mental, qualquer intervenção terapêutica tem, forçosamente, de ter motivação e vontade pessoal de quem a ela se vai sujeitar, não pode nunca ser imposta de fora e muito menos usada como uma forma de “sentença legal”. Descansa consciências e permite sacudir a água do capote de pessoas e instituições.