Na edição semanal do "Expresso" de sexta-feira, Miguel Sousa Tavares escreveu um argumento de um filme que está completamente desfasado da realidade. Uma coisa é rejeitar as redes sociais, outra é rejeitar a realidade. E Sousa Tavares está desligado da realidade. Sousa Tavares está dentro dos livros do século XIX e XX, isto é, está numa realidade paralela que não existe. Eu também li esses livros, mas convém cruzar os livros com a realidade aqui e agora. Pode parecer estranho, mas Gogol está morto.
Para começar, Sousa Tavares faz lembrar aqueles advogados da ‘realpolitik’ que não compreendiam a Alemanha nazi. É o que dá olhar para um Estado sem considerarmos o seu regime, as suas narrativas. O Kaiser tinha uma racionalidade clássica ligada à realpolitik. Era uma racionalidade que se podia demonstrar, era mensurável. Hitler não tinha essa racionalidade, tinha apenas um expansionismo que desafiava qualquer racionalidade; vivia no tempo místico do pangermanismo. A Rússia de Putin não é uma potência realpolitik. A URSS nunca perdeu essa racionalidade, porque se julgava forte. Putin não tem essa racionalidade, porque esta Rússia é decadente e fraca, só lhe resta esta fuga para a frente, este caminho à Macbeth: antes atravessar um campo cheio de sangue do que admitir que está errado.
A China, sim, ainda está na racionalidade da realpolitik. Esta Rússia não é um poder clássico a defender a sua esfera de influência. É uma ditadura quasi-fascista que vive numa narrativa de ressentimento e vingança completamente desfasada da realidade aqui e agora. Os ucranianos de 2022 não são os cossacos que se aliaram à Moscóvia no século XVI. Evoluíram, mudaram, olham para ocidente, não para oriente. Essa narrativa do regime de Putin, composta apenas por fake news, está a limpar a cabeça dos russos mais velhos há mais de vinte anos. É por isso que neste momento a Rússia é um país dividido entre pais e filhos. E tragicamente Sousa Tavares parece ver o mundo como o senhor russo que só tem acesso à televisão da propaganda de Moscovo.
No seu argumento, Sousa Tavares parte sempre do pressuposto de que era e é possível dialogar e negociar com Putin, partindo do pressuposto de que há ali uma racionalidade. Não há. Há hubris, há o desejo de criar terror pelo terror. Na ONU, a Rússia diz que é a Ucrânia que está a bombear os seus próprios civis. Como é que se fala com este nível de negação? Como é que se fala com pessoas que atacam centrais nucleares e que atacam corredores humanitários? Aliás, esta irracionalidade vê-se na forma como a guerra está a ser conduzida. De forma inacreditável, Sousa Tavares diz que a morte de civis é sempre uma consequência da guerra. Vamos lá ver se nos entendemos. Uma coisa é haver danos colaterais numa guerra; outra coisa, bem diferente, é o sistemático e deliberado ataque contra civis. É espantoso que Sousa Tavares, na sua russofilia, não consiga fazer esta distinção moral em mais de 6 mil carateres. É como se Sousa Tavares estivesse a ver a realidade através da Fox News do Putin.
Por outro lado, mesmo que esta Rússia fosse apenas uma potência clássica da realpolitik, o argumento de Sousa Tavares não faria sentido, porque uma democracia soberana deve ter o direito de escolher o seu caminho. A geografia e a História são importantes, sem dúvida, mas não são destino. No argumento de Sousa Tavares, Zelensky devia simplesmente render-se e aceitar o inevitável, em vez de lutar por aquilo que Sousa Tavares dá por garantido: paz, tranquilidade, democracia.
Como é que os progressistas do século XX, como Sousa Tavares, se transformaram tão rapidamente nos relativistas do século XXI? E há uma coisa que o materialismo de Sousa Tavares não compreende. A História não é feita só de estruturas, há variáveis qualitativas que contam: a vontade, o amor pela pátria e pela liberdade. É por isso que a Rússia está a perder militarmente esta guerra. Já perdeu em duas semanas o número de homens que os EUA perderam em 20 anos de guerra ao terror. Já perdeu metade do que a URSS perdeu em 10 anos de ocupação do Afeganistão.
George Washington chegou a ter apenas 3 mil homens contra o maior império da História, mas ganhou. A Irlanda nada podia contra o maior império da História, não era? Os guerrilheiros portugueses nada podiam contra o maior império da época (Napoleão), não era? Mas foi aqui em Portugal que a “Grande Armée” começou a perder. Foi o povo ibérico, portugueses e espanhóis, que criou o partizan moderno. Foi o Zé e o Pablo que começaram a destruir - com um heroísmo que está por contar em Portugal - o Putin da época, Napoleão.
Se a lógica de Sousa Tavares fosse o motor da História, nós, portugueses, devíamos ter estado quietos enquanto os franceses saqueavam Portugal, enquanto matavam homens e violavam mulheres. Aliás, se Sousa Tavares tivesse razão, a corte inteira que fugiu da luta contra os franceses (entre 7 mil e 10 mil pessoas) era um primor de sensatez e heroísmo. Pior: se Sousa Tavares tivesse razão, Portugal não podia existir, porque estava e está na “esfera de influência” da Espanha, que chegou a ser a maior potência do mundo. Se Sousa Tavares tivesse razão, os EUA não existiam, tal como a Irlanda independente, tal como a Holanda, tal como a Noruega, etcétera. De facto, é uma maçada isto de os povos desejarem liberdade e respeito.