Opinião

O engodo governamental dos vouchers de combustíveis

A carga fiscal nos combustíveis chega a atingir níveis de usura. Os impostos sobre os combustíveis são dos impostos mais regressivos que existem – penalizam mais quem tem menos rendimentos – e penalizam também mais o interior do país

Temos assistido, nos últimos dias, à publicação de títulos na imprensa e declarações várias a celebrar a ”generosidade” do governo na devolução de 20 euros através da mecânica IVAucher no denominado AUTOvoucher. “Governo dá”, “governo vai dar bónus” são destaques típicos sobre os quais tenho dúvidas que passassem pela lei de publicidade enganosa.

Faço a seguinte leitura da situação:

1. Baixar os impostos sobre os combustíveis seria muito mais eficaz;

2. Atuar pela via dos impostos e não através de vouchers seria socialmente mais justo;

3. O Governo não dá – o Governo apenas devolve.

A carga fiscal nos combustíveis chega a atingir níveis de usura. Em Portugal, cerca de 60% do preço de venda da gasolina corresponde a impostos, entre IVA e ISP. No gasóleo é um pouco menos, mas continua acima de 50%. Se compararmos internacionalmente, é mais um parâmetro em que Portugal tem má classificação. Comparando a situação, por exemplo, com Espanha fica muito claro que, quer no gasóleo quer na gasolina, o preço antes de impostos é, grosso modo, semelhante; o que faz a grande diferença no preço para o consumidor, é a enorme carga fiscal. Quando comparamos o preço final dos combustíveis em Portugal com o de outros países, estamos nos lugares cimeiros. Para além de Portugal ser um dos países com os combustíveis mais caros, os poucos países onde o preço é ainda superior, são países como a Finlândia, a Dinamarca ou os Países Baixos, o que significa que, se analisarmos em termos de paridade do poder de compra, lamentavelmente, estamos muito longe dos lugares do pódio.

Há poucos meses, o tema da carga dos impostos esteve na ordem do dia também quando o governo anunciou a intervenção nas margens de comercialização dos combustíveis. Como ficou explicito acima, a carga fiscal é a essência do problema.

Por outro lado, algo de que pouco se fala na opinião pública, os impostos sobre os combustíveis são dos impostos mais regressivos que existem (penalizam mais quem tem menos rendimentos, pesando mais no seu cabaz de consumo básico). Para além desta característica, no caso português, penaliza também mais o interior do país, que não tem as alternativas de transportes públicos que grandes centros urbanos têm – mais um tema em desfavor do país a duas velocidades. Sendo bens inelásticos, ainda teremos a perversão de, nestas circunstâncias, se ver a receita fiscal aumentar.

Por fim, uma questão que vai muito para além da semântica: o Governo não “dá”– o Governo devolve. Perante o nível de carga fiscal praticada, o desconto é dado a posteriori para quem rebater. Quem conhece a realidade dos rebates nas campanhas comerciais, e os próprios resultados desta operação em 2021, facilmente se percebe que este “desconto” não será utilizado por todos e que entre burocracias e necessidade de literacia até se arrisca a que não utilizem os que mais precisam.

É fundamental contribuir para que se desconstruam as narrativas falaciosas e se divulgue a realidade em prol de melhores políticas: em vez de se criar um engodo com os vouchers, que se baixem os impostos.