Ele disse uma coisa horrível sobre o meu trabalho. Nem era horrível. Agora estou a exagerar. Apenas desagradável. Dita com certo despeito. Não uma daquelas críticas que sentimos virem do lado bom da pessoa. Esta vinha das trevas. De um lado obscuro, venenoso. De um sentimento acalentado há muito e que, por razões que eu então desconhecia, se soltou naquele momento. Para atingir o alvo. E atingiu.
Custou-me ouvir. Cruzara-me com ele uma ou duas vezes. Não era pessoa das minhas relações. Não nutria por ele especial simpatia, mas nada me movia contra ele. Encontrava-se naquela zona intermédia entre o respeito mínimo que se deve a um estranho e uma quase indiferença. Naquele dia, com aquelas palavras vindas do fundo de si, nasceu absolutamente na minha consciência. Disse-as publicamente. Sem que eu pudesse retorquir. Custou, mas tive de aceitar. Faz parte do jogo. Arrumar esses golpes de alguma maneira numa gaveta esquecida, mantê-la fechada, evitar passar por perto.
Mais tarde, soube que o indivíduo estava muito doente. Uma doença incurável, terminal. Pensei: era isso, a proximidade da morte libertou-o para dizer o que pensava. Por boa educação, por certo pudor, não fazemos de todas as ideias espadas aguçadas, letais, mas, perante a iminência da morte, libertamo-nos desses espartilhos e somos tomados pela coragem que em tantas ocasiões nos faltou. Já não nos preocupamos com a nossa imagem, com o que vão pensar de nós os que não nos são próximos e também pouco nos interessa o efeito nocivo das nossas palavras nas vésperas de nos apagarmos na eternidade. Percebi que ele era um cobarde a que a consciência abrupta da morte prematura viera dar uma coragem artificial, também ela tingida com as cores do fim.
Quando por fim morreu, senti uma alegria estúpida, mesquinha, malévola, não no momento imediato, que esse foi de algum choque, mas depois, quase como se me tivesse apercebido de que fora eu o assassino. Lamentei apenas não ter tido oportunidade de o encontrar para lhe dizer que aquelas palavras me tinham magoado e que ele tinha agido como um filho da puta, alguém que atacara quando estava de saída para sempre. Mas isso nunca teria acontecido porque também a mim me faltava a coragem. Eu era igualmente cobarde e, como ele, talvez só a iminência da morte me tivesse libertado para dizer o que de outra forma nunca diria.
Não tive sequer o direito ao prazer de ser eu a acabar com ele. Foi a doença. E o pior é que não pude evitar a sensação infame de que a doença tinha agido em meu nome. Pensei: “morreu de doença? Tanto melhor. Se foi o pavor da morte que lhe deu para ser cruel quando antes era de uma hipocrisia afável então agora só teve o que merecia. O pavor era justificado. Alguém que precisa da morte para ser sincero, para despejar tudo o que guardou em silêncios rancorosos, não vale nada. Morreste bem!” E desfrutava da minha triste vitória, da minha vingança impotente.
Esqueci-me do episódio e da figura. Ou quase. Até que há dias vi uma fotografia dele, em criança, três ou quatro anos, sorridente, tão feliz, e pensei no riso puro dos meus filhos e tive pena de que não pudéssemos ter sido amigos, eu e aquela criança, que nunca nos tivéssemos aproximado e que na hora da morte dele o orgulho e a vaidade me tivessem subjugado por causa de umas palavras que nada valiam. É verdade que não podemos ser amigos de toda a gente e que aquelas palavras me magoaram, mas quem morreu, percebi tarde de mais, não foi o homem que me atacou com palavras, foi aquela criança de sorriso puro como o dos meus filhos. E tive vergonha de mim e do meu rancor.