DEPRESSA E BEM…
Quando eu era pequeno e o Mundo lá fora parecia assustador e complexo, a segurança e conforto chegavam-me nas palavras do meu pai, que me falava de um país antigo e honrado, cujo direito a existir fora conquistado a pulso, contra ventos, marés, mostrengos e velhos do Restelo na praia velha a perorar.
Um dos esteios desse país construído a golpe – paraíso plantado à beira mar – eram as suas Forças Armadas (FFAA), velha instituição nova, servidas por tantos jovens e menos jovens ao longo de gerações, dos tempos antigos da luta pela independência aos dias sangrentos das guerras de África. Mais tarde, elas fizeram Abril e trouxeram a liberdade, que defenderam em Novembro contra as Forças adversas da repressão e do Mal.
E o meu pai explicava-me a importância de tratar as FFAA com respeito, de lhes dar o lustro devido a quem tantos e tão leais serviços prestou ao país.
Vem isto a propósito da apressada reforma das FFAA, formalmente iniciada há menos de um ano e que mais pareceu uma corrida contra o tempo do que um esforço sério e profundo de revitalização de um setor em clara fase de pré-ruptura.
E o que se pedia, num país de parcos recursos e crescimento anémico, era que essa reforma, obviamente necessária, civicamente exigível, se fizesse após um debate público amplo e participado; que resultasse de uma sólida e reflectida unidade nacional (que não união nacional), com uma contribuição robusta dos próprios militares; que tratasse daquilo que verdadeiramente interessa e de que depende a revitalização do sistema de forças e da capacidade de acção das FFAA; e que fosse um sinal de coesão interna, de reconciliação dos portugueses com a instituição militar, de esperança num futuro em que as FFAA voltassem a ser o esteio que sossega as crianças pequenas.
Foi todo o seu contrário. Em poucos dias, entre fevereiro e março de 2021, anunciou o Ministro de Defesa Nacional (MDN) a intenção de apresentar uma lei para reformar as estruturas superiores das FFAA - e apresentou-a; aos chefes de Estado Maior dos três ramos (Armada, Exército e Força Aérea) pediu-se que se pronunciassem à velocidade da luz (dizem-me que em 6 horas) - só em junho e já em sede de especialidade foram ouvidos na comissão de defesa nacional da Assembleia da República (AR); convocaram-se (dizem-me que em 8 dias) os Conselhos Superior Militar, da Defesa Nacional e de Estado, para opinar; a 25 de junho, votaram-se no Parlamento as alterações à Lei de Defesa Nacional e à Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas, aprovadas por PS, PSD e CDS.
Finalmente, a 2 de agosto – depois de mais de um mês de reflexão – o Presidente da República (PR), Comandante Supremo das Forças Armadas, promulgou as Leis.
SEM TEMPO NEM PARTICIPAÇÃO
Rápido mais rápido não há.
Pelo meio, ficou sem resposta a preocupação dos 28 signatários da carta pública dirigida aos responsáveis da Defesa Nacional, entre os quais 28 em 29 antigos Chefes do Estado-Maior dos ramos e chefes de Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), um dos quais também antigo Presidente da República (Ramalho Eanes). Nem os ouviram, como deviam, o MDN ou a AR.
E de golpe foi igualmente ignorado o trabalho do GREI, Grupo de Reflexão Estratégica Independente constituído por antigos oficiais generais, que desde 2018 estuda os caminhos para a reforma das FFAA – e não são os agora trilhados, como se pode aliás ler num livro publicado recentemente pelo GREI e apresentado em Lisboa em meados de novembro. Pelo caminho caíram, ainda, as vozes sensatas e preocupadas de tantos comentadores, como Viriato Soromenho-Marques, para quem a subalternização dos chefes militares dos ramos é um “erro de gramática militar que manifesta uma conceção paupérrima da missão vital das FFAA e da responsabilidade das suas chefias, bem como uma conceção crispada do equilíbrio entre obediência funcional e liberdade de expressão”.
Obedecer sim, sempre, desde que as ordens sejam legítimas. Mas um militar pode e deve opinar sobre matéria da respetiva competência – só que nem sempre é aconselhável, como se viu pelas repercussões deste caso. E pelo caminho parecem ter ficado o bom senso e a ponderação.
Convém recordar que, no essencial – razão principal da discordância dos actuais chefes dos ramos e antigos chefes militares –, a reforma visa a transferência exaustiva de competências dos chefes de Estado-maior dos três ramos para o CEMGFA, designadamente do comando operacional conjunto das respetivas forças. Na prática, os chefes militares deixam de despachar diretamente com o ministro as questões militares (incluindo planeamento, direção e controlo da execução da estratégia de defesa militar e capacidades militares), devendo sempre passar pelo CEMGFA.
Quando, a 2 de agosto, o Presidente da República promulgou as leis, fê-lo com a manifesta incomodidade de quem sabia estar-se perante um simulacro de reforma que, mais do que unir, dividia a sociedade e as próprias FFAA, sem vantagem visível. Deixou claro, contudo, que o fazia devido (sobretudo) à maioria parlamentar que as aprovou e também por haver margem de apreciação dos decretos-lei que, no futuro, lhes dariam execução. Ficou claro, sobretudo, que os iria analisar à lupa.
Mas para isso ser bem feito, ouvindo todos os interessados, os autores da carta dos 28, o GREI, a sociedade civil, era preciso que pelo menos esses decretos regulamentares fossem preparados com tempo. Não foi o caso, pois logo em meados de novembro, aprovados por um governo enfraquecido pelo anúncio da dissolução da AR, o Presidente da República os recebeu para promulgação.
A NUVEM E A CHUVA
Quando chega a nuvem, a chuva não vem longe.
Promulgadas as alterações às leis fundamentais das FFAA, o governo pareceu desse facto retirar como ilação o direito de decidir o que lhe aprouvesse sobre elas. E no dia 28 de setembro, terminava Gouveia e Melo o seu glorificado mandato na frente pandémica, logo o MDN chamou o chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) para o demitir. Não fora a intervenção decisiva do PR e teria sido punido um contestatário – o CEMA, Almirante Mendes Calado – e instrumentalizado Gouveia e Melo (para usar a expressão de Viriato Soromenho-Marques, em artigo de 2 de outubro).
Não foi só isso, ainda que se o fosse já seria mais do que suficiente.
Também o nome indicado pela Marinha para o cargo de Comandante Naval foi rejeitado pelo MDN, ouvido o CEMGFA. Será este já um caso de interpretação maximalista das novas leis, que, sem prejuízo de considerações sobre a bondade da decisão, faz com que a Marinha de Guerra portuguesa esteja sem Comandante Naval há mais de quatro meses, o que – dizem-me fontes da Arma – é uma situação inédita e grave?
Em causa estão, em todo este apressado processo, o prestígio das instituições, a confiança de militares e civis nas lideranças, o conhecimento cabal de quem prepara um processo desta envergadura sobre o sector a reformar, a incompreensão sobre os padrões e princípios militares, o respeito entre todos, o moral, a expectativa de quantos esperam ansiosamente por uma verdadeira reforma das FFAA, o valor efetivo, o respeito e reconhecimento que merece a condição militar, a consideração devida a todos quantos se manifestaram, entre os quais castrenses ilustres e antigos Presidentes da República, todos atropelados pela velocidade excessiva e inconsiderada do processo.
As Forças Armadas de um país, sobretudo de um antigo país como Portugal, pertencem em primeiro lugar aos seus cidadãos. E a mais ninguém.
Desde o primeiro dia que, a respeito da reforma das FFAA, Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República e seu Comandante Supremo, salientou a importância do seu sucesso, conciliando “arrojo e bom senso, assertividade e participação, reforço institucional e plasticidade pessoal”.
Ora arrojo houve, bom senso pouco; assertividade, sem dúvida, participação escassa; reforço institucional nenhum; e alguns dos interlocutores ou não entenderam o meio em que navegavam ou não foram capazes de antecipar a chuva à vista da nuvem.
Não posso senão desejar que o bom senso volte a imperar e que, num período pré-eleitoral, com o Parlamento dissolvido, seja dado a este processo e à concretização das medidas aprovadas o tempo e respiração necessários à participação, ao reforço institucional e a uma verdadeira, justa e eficaz reforma das nossas Forças Armadas.
Para que às crianças de hoje qualquer pai possa dar a segurança que o meu me deu.