Opinião

Mãe, posso ir com a tia Catucha à Festa do Avante?

A festa faz-me lembrar aquela cena no Reservoir Dogs, do Tarantino, em que o Mr. Blonde (Michael Madsen), num armazém, tortura um polícia, e isto tudo ao som do “Stuck in the Middle with You” dos Stealers Wheel. E nós, passivos, na cadeira, vamos batendo o pezinho ao som da música. E é quando o Mr. Blonde sai do armazém, quando a música pára e quando a tortura é interrompida que nos apercebemos da hediondez da cena. Vá, agora, ide lá, com a tia Catucha, ouvir os Xutos e bater o pé no chão. Mas quando saírem, em silêncio no carro, pensem nos milhões de mortos e de famélicos da terra, vítimas do comunismo, que ajudaram a celebrar. Ou a esquecer

A maior festa portuguesa é comunista: chama-se Avante, e não há festa como esta. Há uma semana tivemos mais uma. E eu, apesar de tudo, acho que a devemos preservar. Mas, antes que a direita me incinere pela defesa da festa, e a esquerda me mande lapidar pelo "apesar de tudo", deixem-me explicar melhor.

Quando, no dealbar dos anos 90, conversava com um amigo sobre o quão jurássicas soariam as ideias comunistas no futuro, estava longe de imaginar que em 2021, em Portugal, os comunismos seriam suporte parlamentar do governo, tivessem tanto poder fático e gozassem de tanta complacência. Disse comunismos, para incluir marxistas, leninistas, estalinistas, trotskistas, e outros istas pós-modernistas.

Desculpem-me o entusiasmo e a imaturidade juvenil; naqueles dias da década de 90, a queda do muro de Berlim e o colapso da URSS pareciam mesmo o fim da História.

Primeiro, o elogio: o PCP, que não vale mais que 300 mil?, 400 mil votos?, organiza ininterruptamente uma festa onde toda a gente já foi ou quer ir. Ou quase. Digo ininterruptamente sem verificar se foi assim, mas para sublinhar que, no ano passado, quando a toda a gente foram anunciadas medidas de restrição, o PCP pigarreou e o dr. Costa amochou. E disse que toda a gente já foi ou quer ir, não por estar a pensar em Marcelo Rebelo de Sousa, em Victor Gaspar ou em Miguel Esteves Cardoso. Na verdade, estava a pensar em amigos e filhos de amigos, anónimos, que, educados e empenhados na defesa da democracia e da liberdade, já lá foram ou lá querem ir. E reforço: até eu, quando a festa era no Alto da Ajuda, também por lá passei, de mão dada com o meu querido pai. Mão dada é, na verdade, uma maneira de dizer. Eu era muito pequeno e a festa tinha muita gente. O meu pai atou, então, um cordel à presilha dos meus calções e a outra ponta à presilha das suas calças: para não me perder e ter-me sempre ao alcance da sua mão. É uma metáfora bonita para o comunismo, ou não é?

O PCP fez da sua rentrée política anual um festival de música, onde quem quer vingar no panorama artístico quer actuar. Festival de música? Bom, isso é a resposta que me dão quando falo no significado político do evento: 'Qual é o mal?' - perguntam-me indignados pelas minhas adversativas - 'Eu só lá vou ver o Xutos!'. Porém, quando os festivais de música, por força da pandemia, foram proibidos, a festa passou a ser, outra vez e essencialmente, um encontro político.

E, camaradas, eu conheço o vosso espírito de fraternidade, a genuinidade do carácter, e a boa índole de muitos de vós. É com isso que cativam quem por lá passa. Mas também conheço as vossas ideias políticas, as vossas ambiguidades, o ímpeto de alguns de vós, e a miséria e morte que o comunismo deixou em tudo e todos em que tocou ao longo da história. E, helas, eu e o Fukuyama estávamos enganados: a história não acabou.

Falamos disso?

Ouvir gritar, e gritar também, Democracia, Liberdade e Resistência, é coisa para deixar o coração transbordante a qualquer um. Mas leio a lista das comitivas internacionais presentes na festa e vejo, entre outros, sempre por lá o Partido Comunista de Cuba, o Partido Comunista da China, ou a Solidariedade para com a Venezuela Bolivariana. Revisito a relação do PCP com o regime da Coreia do Norte e pasmo com as declarações de Jerónimo de Sousa, para quem a existência ou não de uma democracia em Pyongyang “é uma opinião”. E recordo que em 2017 uma delegação do Partido dos Trabalhadores da Coreia, representantes do regime de Kim Jong-un, subiu ao palco antes de Jerónimo para receber uma saudação especial.

Repito: Democracia, Liberdade e Resistência são coisas para encher o coração de qualquer um. E numa festa carregada de sorrisos abertos, abraços apertados, cerveja fresca, vinho e chouriço até fartar, boa música e ainda por cima tax-free, é coisa para comover até um conservador liberal como eu. Mas, desculpem lá a contra-corrente: que tal irem exortar a Democracia aos Cubanos, a Liberdade aos Coreanos do Norte e a Resistência aos Chineses, sem o manto protector do espectro da Internacional Comunista? De caminho podem sempre dar uma saltada à Venezuela em missão de solidariedade e cantar “De pé, famélicos da terra”; eu estou convencido que há lá quem precise de ânimo. Levem comida.

E por falar em solidariedade, eu faço já a minha parte. Daqui apelo aos responsáveis da Sextante Editora que enviem um exemplar d’ O Arquipélago Gulag, do Soljenítsin, à Rita Rato. Podem usar a morada do Museu do Aljube. É lá que a senhora directora prepara uma estratégia de apoio à causa LGBT. Mas, camaradas, aqui entre nós: não há por aí ninguém que lhe possa contar a história do Júlio Fogaça primeiro? E aviso já, não vale a pena mandar, para o efeito, ex-militantes. Ainda ia o José Magalhães. Também não mandem nenhum daqueles zelosos seguranças, ou membros do apoio, ou voluntários, ou lá como é que vocês chamam aos homofóbicos que deram uma surra ao espanhol que beijou outro homem em pleno recinto, em 2015.

Enfim, concluo: o PCP já não é o PCP de Cunhal, que assegurava à intrépida Oriana Fallaci, que Portugal com ele nunca teria uma democracia parlamentar de tipo ocidental, e, recentemente, até já foi mostrando uma arrelia saudável perante esta proto-ditadura sanitária em que as alminhas mais frágeis vão embarcando. Chapeau! Mas, a verdade, é que ainda há por lá quem queira "derrubar o capitalismo pela força", alertando que o "afastamento dos princípios do marxismo-leninismo conduz inevitavelmente à degenerescência''.

O leitor mais atento, por esta altura, pergunta-se: mas, então, porquê preservar a Festa do Avante? Mea culpa! Duas razões: sou um conservador e gosto de museus; por outro lado, sou um cinéfilo.

Cinéfilo? Sim, cinéfilo. A festa faz-me lembrar aquela cena no Reservoir Dogs, do Tarantino, em que o Mr. Blonde (Michael Madsen), num armazém, tortura um polícia, e isto tudo ao som do “Stuck in the Middle with You” dos Stealers Wheel. E nós, passivos, na cadeira, vamos batendo o pezinho ao som da música. E é quando o Mr. Blonde sai do armazém, quando a música pára e quando a tortura é interrompida que nos apercebemos da hediondez da cena. Vá, agora, ide lá, com a tia Catucha, ouvir os Xutos e bater o pé no chão. Mas quando saírem, em silêncio no carro, pensem nos milhões de mortos e de famélicos da terra, vítimas do comunismo, que ajudaram a celebrar. Ou a esquecer.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia