Estava a ouvir “Moonage Daydream”, do mítico David Bowie, esse grande inventor de ‘space operas’ (adiante) e se há verso que me cativa no tema é este ”Don't fake it, baby / Lay the real thing on me”.
Acho tão bonita a reflexão por detrás destas palavras. E, sobretudo, a sua ligação com o apelo implícito a cada nova sessão, a cada novo caso, quando me coloco na disponibilidade real de acolher o que vem do(s) outro(s), no setting do consultório. É uma lufada de ar fresco – particularmente nestes tempos “mascarados” que vivemos – e, literalmente, regenerador o potencial de um espaço terapêutico de liberdade, por excelência, isento de julgamento, sendo que me considero uma licenciada (e calejada) guardiã de segredos, que o seria mesmo que este sigilo não estivesse protegido por lei (que está), em ambiente 100% seguro para a abertura ao real.
Temos a tendência para estar quase sempre a falar pelos cotovelos, como se o silêncio fosse sinal de tédio, desinteresse ou de uma vida sem graça. No silêncio pode surgir tanta coisa, e a presença como algo especial. Podemos sorrir levemente, respirar, olhar nos olhos. E, claro, podemos falar quando isso melhora o silêncio.
Sou uma apaixonada por interioridade, pelos espaços-tempos únicos em que é possível respirar, ser-se livre, por sinceridade, por lágrimas, de verdade, e trabalho com o privilégio de vê-las com alguma frequência.
Às vezes há os chorinhos, mais ou menos dramatizados, que algumas pessoas usam para se defenderem de emoções mais profundas, e depois há os choros, com “C” grande, aquele que às vezes pode babar, escorrer, pingar a cara, e esse geralmente costuma vir de um lugar emocional muitíssimo profundo. Para mim, é sagrado. Relíquia que requer o mais cuidadoso manejo terapêutico.
Aqui, “the real thing” ou a verdade acontece muito através desse choro redentor, de quem está exausto(a) de certo aspecto da vida, de quem admitiu uma certa falência dos jogos que costuma usar. Sacrossanto para mim porque requer uma coragem de leão, um esforço hercúleo na medida em que precisa da humildade de admitir que não se consegue mais, de que a vida pesou além do possível, que, naquele momento, já não visualiza como se articular se não com mudanças substanciais.
Todos nós possuímos uma verdade sobre nós que omitimos de nós mesmo(a)s e do mundo que nos cerca.
Quando este tipo de verdade visceral, a que vem quase que das entranhas, acontece diante de mim, eu agradeço sempre, muito honesta e comovidamente, o privilégio e a confiança de o testemunhar, pois sei que para algumas pessoas – em especial as que se acham duronas – é um momento raro de sensibilidade vulnerável. E isto segue sendo das coisas que realmente mais me tocam: verdade, vulnerabilidade, transparência, beleza, certa pureza, canto lírico, até.
Esta questão é muito tocante para mim. Pois todos nós carregamos uma parte truculenta, outra vitimizada e ainda outra profundamente lúcida e cheia de sabedoria e compaixão.
O crescimento emocional dá-se essencialmente na abertura ao outro, na melhor comunicação, na busca de se perceber feito da mesma textura, costurando um mesmo tecido da realidade em que estamos todos igualmente implicados. Não há desenvolvimento pessoal sem que o outro esteja envolvido, e o seu crescimento é sempre dedicado ao mundo (isto se quiser avançar de verdade no processo, claro).
O encontro nestas imperfeições encerra qualquer coisa de perfeito, é o espaço que permite a construção intersubjectiva verdadeira, a do silêncio, onde, como dizia Winnicott (em 1958) o outro pode existir em tranquilidade.
Todos nós, em algum momento da vida, somos levados a encarar nossas próprias atitudes vis. Perceber que nem todos os nossos gestos são motivados por amor, carinho, respeito e justiça. Que podemos ser cruéis com as pessoas que mais amamos (o adágio “parenti serpenti” ou “Is there so much hate for the ones we love”, como diria a minha musa Kate Bush, outro génio inventor absoluto, mas, idem aspas, adiante). E que além de autores de dramas sem fim, também saímos chamuscados desses conflitos.
Todos carregam consigo as suas cicatrizes. Acredito que a pessoa que se recusa a olhar para as suas marcas torna-se fraca e inexpressiva, e a pessoa que se nega a perceber as feridas que provoca nos outros caminha sem consistência na alma.
Vou contar-lhe um segredo: o sentimento abre as portas da prisão com que o pensamento fecha o coração. E a lucidez só nos chega quando roça o limiar da mesma. O sentimento é como uma espécie de antecâmara para isto quando é proibido ser explícito. Sentir é compreender. Pensar muitas vezes é falhar. Discordamos do outro quando compreendemos o que ele pensa. Somos o outro quando compreendemos o que ele sente. Ver, ouvir, cheirar, gostar, palpar são mandamentos à face da Terra.
Então, aqui não há (auto-)enganos: os sentidos transcendem-nos e são eles próprios a nossa relação com o Todo. Sentir é crença e verdade ao mesmo tempo. Nada em nós existe fora das nossas próprias sensações. Este é o nosso mundo, do qual somos prisioneiros mas redentores também. Não temos alternativa senão concordarmos connosco próprios. Esse é o único critério de verdade. O universo não concorda consigo mesmo, porque continuadamente passa e avança. Também a vida não concorda consigo mesma, porque morre. O paradoxo é a fórmula típica mais natural. Por isso não existe uma só forma para toda a verdade.
Somos eternos mutantes, exploradores de saídas, buscadores de refúgios e possíveis ferramentas internas e externas que tornem a nossa sobrevivência aqui mais apta, menos custosa e sofrida.
Passar pela vida sem marcar ou ser marcado por alguém é uma tentativa ingénua e inócua de viver como uma criança, com uma pseudo-imaculabilidade impotente. São as nossas marcas e cicatrizes que nos tornam o que somos. Na verdade, somos muito mais o somatório do que não dizemos, do que queríamos e não fazemos, dos nossos sonhos frustrados, dos nossos amores inconfessados, dos desgostos desencantados, das resignações remediadas, dos nossos traumas não processados, das nossas dores não curadas do que gostaríamos de admitir. Cada vinco do nosso rosto manifesta os risos e os choros que tivemos ao longo do percurso e não há nada mais natural, humano e bonito do que isso.
Todas as pessoas têm um lago de dor dentro de si e é importante que não tentemos secar esse lago, sob pena de ter uma vida árida sem movimento. As cicatrizes também nos pertencem na forma de aprendizagem, saudade e superação. Evitar que nunca magoemos ou sejamos magoados seria escolher por uma vida onde as águas calmas nos deixam psiquicamente estéreis, emocionalmente anoréticos e existencialmente petrificados.
É essencial suportar os cacos que carregamos de nós mesmo(a)s… Porque enquanto recolhemos esses vidros estilhaçados (re)descobrimos um (provavelmente “o” nosso) diamante.
Escrever a nossa própria história pode ser difícil, mas não é tão duro quanto passar a vida a fugir dela. Aceitar as nossas verdades e vulnerabilidades é arriscado, mas não é tão perigoso quanto desistir do amor, do pertencimento e da alegria (que por outro lado, são as experiências que nos deixam mais vulneráveis).
“Cuidar de si”, em grande medida, consiste em renegociar com velhos recursos ou estratégias indiscriminadamente usadas e que hoje, em muitos aspectos, se podem mostrar obsoletas e disfuncionais: forçar limites, cumprir deveres e aguentar firme, vulgarmente conhecido como ‘engole o choro’. Aliás, digo-lhe mais outra coisa: não dá para entorpecer os sentimentos selectivamente. Se você decide entorpecer os sentimentos “maus”, também entorpece os “bons”.
E bom, aqui ficam as minhas provocações psicológicas du jour:
- Será que poderíamos ser amados pelas nossas vulnerabilidades?
- Será que seríamos aceites por expressarmos e vivermos leais à nossa verdade?
- Seríamos desejados mesmo com as nossas imperfeições e incompetências?
- Nós mesmos aceitaríamos que não fossemos “perfeitos” ou invencíveis?
Estas perguntas seriam mais fáceis de responder se estivéssemos familiarizados com o conteúdo dos “porões” da nossa mente. Mas quem se arrisca a “descer” até eles?
Somente quando tivermos coragem suficiente para explorar a “sombra”, sem negações, supressões, dissociações ou fingimentos descobriremos o poder infinito da nossa “luz”.