Opinião

O ministro da semana: Augusto Santos Silva, o míope do chapéu alheio

Este país é uma sitcom de baixa produção, não é a Twilight Zone. O que Santos Silva faz é seguir à risca a cartilha socialista: a culpa é desse outro Santos Silva, que ele não conhece nem nunca viu. Esse malandro que veio corromper o pobre Sócrates, pensamos nós

O ministro da semana foi Augusto Santos Silva. Disse ministro; e foi exactamente por isso que disse Augusto Santos Silva. Porque, piadas à parte, Santos Silva é, até pelo tempo de serviço como ministro e pela omnipresença em governos socialistas, o protótipo do ministro do PS. E é justo que, na hora em que se prepara para sair, se lhe faça o devido reconhecimento.

Desenganem-se: se para ministro da semana estavam a pensar naquele espectro que vagueia pelo Ministério da Administração Interna, de quem todos os dias se fala e que dá pelo nome de Eduardo Cabrita, tenho uma novidade: já não é ministro, ainda que o mesmo não saiba ou o queira ignorar. Paz eterna à sua incompetência! Já os outros, dividem-se entre os que se calam e ficam na sombra e os que são mandados calar e ficar na sombra: os primeiros para se pouparem ao embaraço de alguém gravar na memória que foram ministros deste governo; os segundos, para pouparem mais embaraços ao Primeiro-ministro.

E porque é que o Augusto Santos Silva foi o ministro da semana? Primeiro, porque escreveu um artigo no Jornal de Notícias fazendo um balanço da presidência portuguesa da União Europeia, e segundo, porque deu uma entrevista aqui ao Expresso onde pede ao Primeiro-ministro para o deixar ir à vida. Num país onde as notícias da política têm cada vez mais origem em twittes idiotas e improvisos incompetentes, escrever um artigo e dar uma entrevista seria, por si só, digno de nota. Mas neste caso mais do que os formatos, são os conteúdos que interessam. E o corolário, claro: Santos Silva vê mal e cumprimenta com chapéu alheio, que é aquilo que o povo diz quando se refere a alguém a querer tirar créditos do mérito dos outros. Miopia e apropriação do que não é seu. Querem coisa mais socialista?

Na entrevista, sobre o assalto mais descarado à democracia desde o tempo do PREC, e sobre o processo de corrupção mais danoso do regime, diz-se, candidamente, “estupefacto”. O ministro que trabalhou de “forma muito estreita” com o Sr. Sócrates, de quem foi “o cão de guarda de uma quinta que [lhe] competia proteger”, diz-se “estupefacto”. Das duas uma, ou Santos Silva, que “durante bastante tempo tinha no gabinete um dicionário”, quis usar o sinónimo menos utilizado da palavra “estupefacto”, entorpecido, e nesse caso valeria a pena explorar as razões pelas quais se deixou entorpecer; ou, numa liberalidade fonética, está a quer passar-nos um atestado: de estupidez de facto.

Vale a pena prestar atenção às respostas, à sequência de indagações e à suavidade do desfecho. Ângela Silva pergunta-lhe se Sócrates foi uma surpresa, ao que Santos Silva responde com uma pergunta: “O que é que foi uma surpresa?”. O que é que foi uma surpresa? Realmente, para quem quis ver, e sem precisar de colaborar com Sócrates de “forma estreita”, pelos menos desde 2009 não há ali surpresa alguma, só confirmação das piores suspeitas. Mas não é essa a razão que motiva Santos Silva, e Ângela Silva percebendo-o, esclarece: “Ver Sócrates apanhado”. A resposta? Outra pergunta: “O que é que quer dizer apanhado?”. Ângela Silva não desarma, já não pergunta, limita-se a explicar o óbvio ululante: “Acusado judicialmente de corrupção”.

Perante isto Augusto Santos Silva não tem saída, faz um lamento estridente. Como destacado militante socialista, como ministro socialista há mais tempo no poder (5229 dias), como um dos ministros mais poderosos em todos os governos em que participou, designadamente o do sr. Sócrates, pede desculpa ao país e assinala todas as medidas de prevenção e combate à corrupção a que o seu partido se obrigou desde então. Não. Claro que não. Este país é uma sitcom de baixa produção, não é a Twilight Zone. O que Santos Silva faz é seguir à risca a cartilha socialista: a culpa é desse outro Santos Silva, que ele não conhece nem nunca viu. Esse malandro que veio corromper o pobre Sócrates, pensamos nós. E, sobre este, a justiça dirá. Lá para 2051 de preferência.

Já no artigo no Jornal de Notícias, no rescaldo da presidência portuguesa da União Europeia, o nosso ministro dos negócios estrangeiros chama a si - ao seu governo - créditos que não lhe são devidos. Fala da estratégia - mais que discutível - com que a UE abordou a questão das vacinas, da Cimeira Social no Porto e do facto da "presidência [ter] assegura[do] que fossem concluídos os passos necessários para que os fundos fossem obtidos e para que os planos nacionais fossem elaborados e aprovados". Falamos, claro, da presidência que começou com o violento puxão de orelhas do Parlamento Europeu a Portugal por causa do processo do Procurador-geral Europeu, e terminou com o escândalo do envio de dados pessoais de manifestantes anti-Putin para…Putin. Sobre isto, nenhuma palavra.

Mas o que neste artigo me interpela mais é mesmo o título, porque o título é todo um programa de "cumprimento com chapéu alheio": A Europa é connosco. A Europa a quem, depois de anos de fundos de convergência que usámos para divergir - não sou eu que digo, foi Elisa Ferreira -, estendemos a mão para receber a bazuca com que, pelo que se sabe, vamos "bazucar" qualquer espécie de expectativa de emancipação económica e social.

Disse que foi o título que me interpelou. Explico melhor. Primeiro, porque "a Europa connosco" não é uma invenção de agora; é um slogan do PS de Mário Soares, de 1976, e pretendia, à época, estimular o país a ser uma democracia liberal e moderna. Segundo, porque me recordou uma outra frase que, não a despropósito, quando esse nobre objectivo começava já a dar sinais de falácia e de falência, foi escrita há mais de 30 anos. Pela mão do malogrado Francisco Lucas Pires. Escreveu ele que temos de deixar de reclamar tanto a Europa connosco. O que Lucas Pires e o grupo de Ofir pretendiam dizer é que cabia a Portugal fazer por si, diminuir dependências, aumentar a sua competitividade, para que, de beneficiário líquido passasse a ser contribuinte activo. Menos a Europa connosco, e mais Portugal com a Europa. Talvez valha a pena, hoje, quando Portugal empobrece por falta de reformas estruturais e sob a batuta incompetente e clientelista do PS, repetir: foi há mais de 30 anos.

Quer aquele objectivo do PS de 1976, quer aquele projecto de país do grupo de Ofir na década de 80 continuam hoje por cumprir; tanto quanto as preocupações que hoje alguns assinalam quando criticam o PRR continuam por ouvir. E é essa triste recordação - essa constatação do que somos - que podemos agradecer, esta semana, ao ministro Santos Silva: a lembrança da miopia e do permanente cumprimento com chapéu alheio, tão próprias deste PS. E de Portugal sob o seu comando. Podemos ser melhores.