Opinião

Personal Jesus

Não acredito na bondade da vontade popular, não tenho fé que chegue para isso. Não acredito no culto da preservação do que está estabelecido. Mas só uma composição das duas posições mediada pelo pensamento crítico das pessoas poderá manter os sistemas democráticos. Discutir a democracia faz-lhe bem. As soluções devem evoluir, o trabalho nunca está feito. Há fortes possibilidades de não ter de ser uma grande empreitada: a democracia está a perder utilidade e o planeta a validade. O cinismo também é uma estação

Acredita-se que Jesus tivesse 33 anos quando foi crucificado. A crucificação era uma pena de morte com preceitos que a tornavam lenta e dolorosa: o condenado era pregado a uma cruz de madeira, de braços abertos, durante vários dias, pelo menos os que demorasse a morte. O peso das pernas tornava-se insustentável para a musculatura abdominal, o que impossibilitava a respiração. Era uma morte por asfixia. Para abreviar essa agonia por vezes fracturavam-se as pernas dos condenados de forma a precipitar o colapso da sustentação abdominal. Não terá sido o caso de Jesus, de acordo com os evangelhos.

O ato da crucificação era precedido de flagelação e o próprio condenado carregava a sua cruz até ao lugar da execução. Também assim foi com Jesus. Outros procedimentos, de exposição e humilhação, se juntaram aos que já faziam parte deste ritual: Jesus terá sido coroado, com uma coroa de espinhos, rei dos judeus, enquanto era torturado.

Porque é que isto aconteceu?

Nos evangelhos houve uma razão imediata: foi a vontade de um grupo alargado de populares. A morte de Jesus Cristo, cumprindo o que estava previsto nas escrituras, foi o resultado de uma consulta popular, de um exercício de democracia direta.

Conhecer a história de Jesus faz bem. O que os evangelhos descrevem, cada um deles de uma maneira distinta, é um homem irredutível na bondade e na coragem e um profundo revolucionário. Jesus terá defendido uma mulher considerada pecadora do apedrejamento popular, terá feito aparecer vinho numa festa e terá bebido vinho, terá alimentado quem tinha fome, terá derrubado bancas e os seus vendilhões junto ao Templo, terá andado no meio dos leprosos, dos pobres e dos desconsiderados, terá mudado a vida de muita gente e, essa parte, continuará a ser válida. Jesus não quis ser político, “a César o que é de César”, mas a sua história é política: de igualdade, distribuição, não discriminação, liberdade. Não sendo na esquerda que se encontra a maioria dos católicos, nem sequer a maioria dos cristãos, Jesus encetou uma doutrina de esquerda.

Como, a partir daí, se chegou à doutrina católica apostólica, ao Vaticano, aos dogmas e preconceitos, é de difícil compreensão. É uma longa estrada e com obstáculos que deveriam ter interrompido esse percurso. Não foi o caso. Este artigo não é sobre isso.

Antes de condenar Jesus, Pôncio Pilatos tê-lo-á submetido à justiça popular. O povo pôde escolher entre Barrabás – um conhecido delinquente que havia praticado um homicídio – e Jesus, um homem estranho.

A multidão, instigada pelos sacerdotes que viam em Jesus uma ameaça, escolheu, e de forma inequívoca, salvar Barrabás da pena máxima e crucificar Jesus. Pilatos sabia que uma injustiça estava a ser cometida e ainda terá tentado interpelar a multidão, perguntando que mal lhes tinha feito Jesus. A resposta terá sido o pedido expresso da crucificação de Jesus.

Conhecer o poder, e a irracionalidade, de uma multidão enfurecida - como conhecer a história de Jesus – é obrigatório. Talvez exista uma fórmula que a desarme mas, do que se sabe, ainda não foi encontrada. Saber disso é importante. Charles Bukowski escreveu: “Wherever the crowd goes, run the other direction. They're always wrong.” Talvez Bukowski tenha, como fez em tantas outras coisas, exagerado. Mas há aqui um fundo de verdade: o povo pode não ter razão.

São más notícias para a democracia, sobretudo se se fizer de conta que do exercício da vontade popular nenhum mal virá. Grande tema. Seria de facto magnífico se a vontade popular não fosse corrompida pelas fraquezas intelectuais e emocionais de todos nós. Seria também surpreendente. A democracia assenta naquilo que é altamente falível. Assenta também em princípios, direitos, liberdades e garantias de carácter universal e imutável, que deverão estar transpostos para a legislação e que não são o resultado de uma criação mas de um reconhecimento. A luta pelos direitos humanos é sempre uma luta pelo reconhecimento daquilo que já existia ou que já era devido.

Perante estes pressupostos a resposta para o problema intrínseco da democracia parece ser a preservação e o cumprimento dos normativos jurídicos que consagram o que é fundamental, no nosso caso o que está na constituição e em vários diplomas da lei ordinária. Não é má solução mas também ela contém um problema difícil de ignorar, trata-se de uma forma de proteger o poder político que está instituído e de resistir ao que nos trouxe à democracia: o questionamento do que estava instituído.

Falar na crise da democracia, como falar na do capitalismo, é além do mais irritante. Fala-se na primeira em jeito de agouro e na segunda em jeito de: agora é que vai ser. A seguir não costuma acontecer nada. Há aqui um fenómeno “Pedro e o Lobo” e claro que um dia o lobo chega.

Posto isto, a democracia está mesmo em crise. A este propósito falou Pedro Adão e Silva, aquando da sua escolha como comissário executivo das comemorações dos cinquenta anos do 25 de Abril, mas em sentido completamente oposto. Escreveu Pedro Adão e Silva no Twitter: “Padeço de algum otimismo em relação ao estado da democracia portuguesa.” A seguir admitiu que poderia estar enganado nesse seu otimismo mas pela polémica gerada com a sua nomeação, concretamente por os portugueses terem posto em causa a necessidade de umas comemorações com ambição programática e dignidade institucional.

O primeiro aspecto a comentar tem a ver com Pedro Adão e Silva estar, neste momento, otimista em relação ao estado da democracia portuguesa. Razões existem de sobra para que não estivesse. Existe um partido racista e neofascista com assento parlamentar. “Não passará” dizia-se no 25 de Abril. Acontece que passou e que está a ter impacto na dinâmica dos partidos. Quem foi escolhido para organizar tão importantes comemorações talvez não se tivesse envolvido na revolução em 74.

Sucede também que parte dos portugueses que reagiram intensamente à escolha de Pedro Adão e Silva fizeram-no por estarem indignados com as suas condições contratuais, que consideraram excessivas como se de um tacho se tratasse.

Na matemática o menos por menos dá mais, mas na vida não. É tudo fraco. É pena que Pedro Adão e Silva não reconheça a gravidade do momento e é também pena a reação básica à volta da sua escolha. Essa reação vem de facto confirmar que a democracia está em crise mas não pelas razões que Pedro Adão e Silva considerou. Ela foi só uma demonstração da insatisfação, da desconfiança e da raiva dos portugueses em relação às elites e é nessa insatisfação, e nessa desconfiança, que surgem todos os problemas. É aí que começa a tal crise.

O sistema democrático assenta na representatividade e quem de facto detém o poder são os partidos eleitos e os seus representantes e ainda quem exerce influência. As chamadas elites. Se o povo não confia nelas, está atingida a centralina do sistema.

Mais, quando o povo deixa de acreditar nas elites, começa a tomar consciência do seu próprio poder. Serão estas boas notícias? Deveriam ser mas não são. Não existe uma resposta simples para nenhuma das questões que possam aqui ser colocadas e também não existe grande disponibilidade quer do poder político quer das pessoas que o questionam para encarar complexidades. O debate político não é um debate de ideias nem um debate de propostas, é um dissecar de casos e de escândalos, um siga.

No caso de Jesus coloca-se a questão de avaliar se tudo correu como deveria ter corrido – aquela escolha da multidão foi um passo para o cumprimento das escrituras, Jesus não queria a cruz mas queria cumprir a palavra do seu pai – ou se Jesus deveria ter sido salvo. Na interpretação religiosa, diferente da política, a raiva e a cegueira daquela multidão foram um instrumento da vontade de Deus. Tudo terá acontecido como previsto e como deveria ter acontecido.

E nós?

A democracia está em crise e a sua base, a vontade popular, pode estar a postos para lhe aplicar o golpe final. Mas pode dar-se o caso de, também aqui, tudo acontecer como está previsto. A democracia como suporte para o capitalismo pode ser substituída, e de uma forma mais eficiente, pelo capitalismo autoritário. Está confirmado que sim. Talvez a democracia seja um obstáculo, e não uma necessidade, para o supremo desenvolvimento económico e o capitalismo já tenha sinalizado essa evidência. É que o capitalismo tem a vocação de resolver todas as suas crises.

De qualquer forma, poderá fazer sentido sempre satisfazer a vontade popular mesmo que ela leve à destruição; o sentido de estarmos entregues a nós próprios e de termos de nos conformar com as consequências dessa realidade. Parece que não existe um Deus disposto a intervir e a ajudar-nos e que ninguém nos salvará. Admitir que a democracia não é um regime instituído mas a possibilidade da sua subversão pode ser o exercício oposto ao de tentar conservar o que está estabelecido e envelhecido.

Acreditar nesta versão da democracia e na bondade de qualquer manifestação da vontade popular é um ato de fé. Há qualquer coisa que une uma bíblia a uma constituição e um crente a um revolucionário.

A ver.

Não acredito na bondade da vontade popular, não tenho fé que chegue para isso. Não acredito no culto da preservação do que está estabelecido. Mas só uma composição das duas posições mediada pelo pensamento crítico das pessoas poderá manter os sistemas democráticos. Discutir a democracia faz-lhe bem. As soluções devem evoluir, o trabalho nunca está feito. Há fortes possibilidades de não ter de ser uma grande empreitada: a democracia está a perder utilidade e o planeta a validade. O cinismo também é uma estação.

Se todos os factos que estão relatados neste artigo aconteceram? Não sei.

Se são verdade? Sim.

Como na canção: “Reach out, touch faith”.