A língua portuguesa é comemorada em maio e segundo a página da UNESCO é uma das línguas mais difundidas no mundo. Terá mais de 265 milhões de falantes espalhados por todos os continentes, e é também a língua mais falada no hemisfério sul.
Nove países têm como idioma oficial o português. O português ou restos dele circulam por segmentos da população em outros territórios, como Macau; Goa, Damão e Diu; Malaca; Ilha das Flores, na Indonésia; Batticaloa, no Sri Lanka; e está na base do papiamento das Ilhas ABC, no Caribe. Em alguns países da América do Sul, como Uruguai, Venezuela, Paraguai e Guiana, há comunidades que falam o português.
Por que nos orgulhamos da importância da língua? As línguas são mediadoras, revelam a psicologia dos povos, apreendem e constroem a realidade à sua maneira, permitem unir o eu ao tu, aspiram à unidade e universalidade. Que significado pode ter a língua portuguesa para mundos diferentes e muitas outras comunidades?
A língua portuguesa tem um passado. Esse passado é herança de um espírito do tempo, exportado ou imposto pela centralização política e linguística. A centralização pretendia estabilidade, sacralização da língua por todo o império. A língua centralizada, tal como a lei, transmitiu peso institucional, viabilizou uma carreira nas forças armadas e nas administrações coloniais. A língua viajou, tal como a arquitetura das catedrais e dos fortes, os traçados de vilas e jardins municipais, os bairros das Fontainhas, o fado e o forró, a vinha d’alho e os doces conventuais, as buganvílias, a religião e as leis. E tal como eles, a língua não continha todas as representações do pensamento e dos objetos, desencadeou essas representações por parte de quem a apreendeu. Criou uma comunidade.
O colapso do império romano significou o colapso do latim, com uma transformação linguística rápida. O mesmo não aconteceu à língua portuguesa fora de Portugal. Ela tem um presente de conforto e desconforto.
É o desconforto da unidade de uma língua confrontada com a pluralidade de mundos: assim se explicam as diferentes reações ao acordo ortográfico; as tensões entre os crioulos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau e o português; entre as línguas nativas dos diferentes povos originários e etnias e o português; entre gerações do tempo colonial e as do tempo pós-colonial em Timor-Leste ou em Goa; entre o português do Brasil e o português de Portugal. A língua pode ser um instrumento repressivo, a língua pode juntar uns e afastar outros.
É o conforto da casa, da pátria reencontrada onde é falada. É memória, instrumento de comunicação entre povos distantes com uma história comum.
A língua é minha, a língua é repressão, a língua é instrumento de reconhecimento do outro? Afinal de quem é a língua? A língua é um ato cultural, não é reproduzida como mera cópia, não é dada como um produto acabado, é uma construção espontânea: para Humboldt e Cassirer, as diferentes línguas não se limitavam a dar diferentes nomes a diferentes objetos, não haveria uma correspondência exata entre os nomes, eles nasciam da representação do mundo por cada povo ou comunidade. O meu mundo limitado traça os limites da minha língua e vice-versa.
No futuro, que significado pode ter a língua portuguesa para mundos diferentes e muitas outras comunidades que vão continuar a evoluir separadamente? Numa visão próxima do relativismo das línguas, povos culturalmente longínquos têm universos diferentes, pelo que a mesma língua não garante o mesmo significado.
Vale a pena manter uma língua comum e lutar por ela?
Todas as línguas mostram a capacidade humana de criar categorias, todas as palavras encolhem a realidade, mas ao mesmo tempo são mediadoras, pretendem chegar ao outro. Todas as línguas desencadeiam representações, mas não as contêm integralmente. As palavras sugerem mais do que o pensamento que as fez nascer ou o seu autor.
Apesar da diversidade dos mundos que a falam, a língua portuguesa é a prova de que pode ser comum a diferentes representações; ela é herança da diferença e da partilha; é testemunho de uma história coletiva; é memória e é futuro. E no diálogo com povos de outras línguas, a língua portuguesa é moeda de troca para o reconhecimento: a comunicação na própria língua traz um esforço recíproco de aproximação.
Tal como outras línguas, a língua portuguesa impôs-se, fragmentou-se, tenta unir-se. As línguas cristalizam ou evoluem, parece que através de uma mão invisível. Há que dar vida à língua portuguesa e não temer as representações de mundos diversos.