Opinião

Um “Admirável Mundo Novo” no Ensino Superior?

Neste último ano, tem sido evidente que é impossível confinar todo o Ensino Superior nos ecrãs, por resultar em perdas de aprendizagem, agravamento de desigualdades educativas e desmotivação para professores e alunos. U/ma reflexão de Mariana Gaio Alves, presidente do Sindicato Nacional de Ensino Superior

Mariana Gaio Alves

A transição digital tem vindo a ser apontada como uma consequência inevitável da pandemia. No Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) português, a apologia da digitalização abrange todo o sistema educativo incluindo o Ensino Superior. Promete-se um “Admirável Mundo Novo” que, tal como no romance com este título que Aldous Huxley publicou há 90 anos, arrisca ser uma indesejada distopia.

Durante o último ano, a crise pandémica tem suscitado adaptações nos processos de ensino identificando-se potencialidades da mobilização mais intensa de recursos e equipamentos tecnológicos para a aprendizagem dos estudantes. Mas, em simultâneo, tem-se tornado evidente que é impossível confinar todo o Ensino Superior nos ecrãs, por resultar em perdas de aprendizagem, agravamento de desigualdades educativas e desmotivação para professores e alunos. São significativos os indícios de que seja sobretudo entre os estudantes de Ensino Superior mais jovens em idade, apesar de profundamente familiarizados com as tecnologias, que mais tenham aumentado as intenções de abandono da formação académica.

A Universidade conheceu, desde as suas origens medievais, diversas revoluções tecnológicas que reconfiguraram a vida e o trabalho nas sociedades, assim como os modos de ensinar e investigar. Um dos momentos mais significativos para compreender o Ensino Superior contemporâneo corresponde, aliás, à revolução industrial dos séculos XVIII e XIX que se interliga com o surgimento e desenvolvimento de sistemas educativos nacionais. Estes sistemas estruturam percursos de aprendizagem desdobrados em etapas sequenciais de ciclos e níveis de escolaridade, em analogia com o modelo fabril de organização do trabalho. O Ensino Superior engloba, desde então, as instituições que propiciam a formação mais avançada e aprofundada através da interligação com a investigação científica que também desenvolvem.

Interligar ensino e investigação, desenvolvendo ambas, requer tempo e espaço. Trata-se de um desígnio inconciliável com a desmaterialização das aprendizagens assente na disponibilização de equipamentos tecnológicos e acesso à internet preconizada no PRR. No atual contexto pandémico parece ter-se intensificado a narrativa que anuncia uma gloriosa revolução digital, associada à crença de que todos os problemas e constrangimentos têm uma solução tecnológica.

Hoje, como noutros momentos históricos, a tecnologia fornece recursos poderosos que importa integrar na educação, mas não resolve todos os problemas. Defender que as aulas consistem em palestras gravadas e difundidas na internet é uma ficção digna de um “Admirável Mundo Novo” que não se deseja. A liberdade académica e de interação entre professores e alunos em seminários e aulas em que ocorrem debates de ideias, experimentações e atividades práticas, são fundamentais. É necessário assegurar que as reconfigurações da vida e do trabalho no ensino superior suscitadas pelas tecnologias não agravam mecanismos de controle e opressão. O espaço e tempo para ensinar e investigar nas universidades e politécnicos é crucial para a construção de conhecimento e para o desenvolvimento de competências que nos permitam enfrentar os desafios ambientais, éticos e políticos que marcam as sociedades contemporâneas.