Opinião

Os loucos anos 20

100 anos depois, os nossos anos 20 também surgem loucos. Mas desta feita de idiotia e opressão

Há 100 anos, no pós-I Grande Guerra, os anos 20 foram loucos. De folia e descompressão. Isto, claro, até os tambores marciais terem rufado novamente. 100 anos depois, os nossos anos 20 também surgem loucos. Mas desta feita de idiotia e opressão. Os tambores, esses, já se ouvem por todo o lado.

Esta semana, por exemplo, a produção dos Simpsons - que num flagrante delito de exclusão nunca empregou um doente com icterícia para fazer a voz de um personagem amarelo - anunciou que o personagem gay da série vai ter a voz de um actor gay. O anúncio foi feito com gala e orgulho. Antes já se tinha desculpado não sei porquê, a propósito de um personagem indiano. A febre não é nova. A loucura não é pequena. Wentworth Miller, o Michael Scofield de Prison Break, já tinha anunciado que não tornará a fazer papéis de heterossexuais.

A sétima arte está hoje repleta de soldadinhos da confirmação e do óbvio. Cada actor não é já aquilo em que se consegue transcender, mas apenas aquilo que é sem mérito próprio. Cada representação não é já a superação de si, a libertação de si, a busca da alma do outro, mas apenas a confirmação da sua característica identitária que convenha no momento. Fernando Pessoa, que parece que era bruxo, há cerca de 100 anos topou-os à légua e sentenciou: o fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, o fim da arte superior é libertar. Nós, por estes tempos, andamos numa de agradar; em nome da inclusão, a toque da indigência.

Arte? Deixem lá isso da arte. Esqueçam a Moral. Os tempos são de política de conflito, ao som de cornetas moralistas. E nesta selva, é como diz o povo: quem pode pode, quem não pode cala.

Têm dúvidas? Tilda Swinton interpretou o Dr. Jozef Kemperer em Suspiria. Se não sabe quem é Tilda há três coisas que precisa saber: é mulher e actriz. Neste filme fez um papel masculino, retratando um psicanalista com 82 anos. Consta que durante as filmagens gastavam, diariamente, 4 horas em maquilhagem e caracterização. Épico. Eu sei, eu disse três coisas: a terceira é que Tilda é um ícone da comunidade transgénero. Tilda pode?

Jared Leto, cisgénero, fez um papelão dando vida ao transsexual Rayon, em Clube de Dallas. Jared pode? Tom Hanks, hetero, fez um papel comovente e histórico de um gay em Filadélfia. Tom pode? Woopy Goldberg, uma mulher negra, no filme O Sócio Perfeito decide travestir-se de homem. Branco. É uma sátira. Woopy pode? Meryl Streep, em Angels in America, faz de ancião. Não me enganei no sexo: faz de homem. Meryl pode?

Laurence Olivier e Orson Wells interpretaram Otelo, o célebre negro Shakespeareano. Laurence e Orson poderiam? E Shakespeare, já agora, poderia? Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes escreveram peças só representadas por homens. Poderiam? Não sejam imprudentes nas respostas. Até porque não são todas iguais. Na dúvida twittem e esperem pelas reacções: aí terão a resposta.

Elenquei vários exemplos de sexo, orientação sexual e cor de pele, porque são estes os traços identitários que agitam hoje a turba. Mergulhada numa crise identitária, esta tresleu a identidade e tomou a nuvem por Juno.

É que já que estamos nisto, que tal tratar traços identitários que dominem todos os outros, subsumindo o resto do "eu"? Psicopatias graves com pulsões violentas, por exemplo. Querem traços identitários mais dominantes e exclusivistas? Anthony Hopkins deu vida ao psicopata Lecter. Anthony pode? Ou é necessário, num esforço de inclusão, ir buscar um psicopata para o papel? Nem quero imaginar o casting para filmes de vampiros e lobisomens.

Pensei intitular esta crónica Et in Arcadia Ego, mas não quis ser cancelado sob injúria de ser branco, elitista e ocidental antes que o estimado leitor chegasse aqui. Porquê Et in Arcadia Ego? Não tanto, mas também, por causa de Guercino ou Poussin, mas sobretudo por Waugh. Em Reviver o passado em Brideshead, Sebastian diz: "É o sítio indicado para enterrar um pote de ouro. Gostaria de enterrar qualquer coisa preciosa em todos os lugares onde fui feliz e, então, quando fosse velho, feio e miserável, poderia voltar, desenterrá-la e recordar." Et in Arcadia Ego lembra-nos de quão efémera é a felicidade. Se Sebastian tem razão, esta é a altura de pegar nos seus livros e DVDs e enterrá-los quais tesouros. Lá mais à frente, mergulhado na barbárie, onde o feio e o miserável abundarem, pode sempre recordar que já fomos bons.