Opinião

Cabo Delgado: qual é a unidade de medida da nossa moral?

Se a perseguição, a destruição e o massacre acontece em Cabo Delgado - “em Hong Kong ou com os uigures” -, é também nosso o dever moral de intervir para alcançar a paz

Pedro Gomes Sanches e Ana Rita Bessa

A tragédia que ocorre em Moçambique, sob um silêncio mal disfarçado do mundo, já provocou milhares de mortos e o êxodo de centenas de milhares de pessoas. Às mãos de assassinos impiedosos e imorais e ante um governo que continua a recusar pedir ajuda externa, a população do norte de Moçambique soma às más condições de vida do costume, o elevado risco de morte violenta do momento.

É claro que, visto assim, o problema é político: enquanto o Estado Moçambicano não solicitar ajuda externa, qualquer tentativa de intervenção será sempre, primeiramente, entendida como uma ingerência intolerável à luz do direito internacional.

Mas não é essa estrita perspectiva que aqui nos traz. O que aqui nos traz é a calamidade humanitária e a derrogação sanguinária de qualquer ordem civilizacional; a obliteração radical de quaisquer direitos humanos.

E, neste cenário, a pergunta que importa fazer, também ela política, é: qual a unidade de medida da nossa moral?

É a distância física? Passam agora 30 anos sobre o atroz massacre de Santa Cruz, em Timor Leste. Naquela que foi a última vitória com significado à escala planetária da diplomacia portuguesa, o país mobilizou-se, e consigo a comunidade internacional, e foi bem sucedido. Santa Cruz está a 19.000 km de Lisboa. Cabo Delgado a "apenas" 10.000.

Temos noção de que os contornos dos conflitos são muito diferentes: da configuração política do problema e dos interesses em causa à história dos movimentos envolvidos, da duração da crise ao empenho diplomático para a sua resolução. Há, porém, um ponto comum: a trágica violação dos direitos humanos e a mortandade que essa violação gera. Há outro ponto comum: a relação histórica que Portugal tem com esses países. Adivinhamos que muitos, hoje, poderão acusar qualquer tentativa de envolvimento de Portugal neste conflito de neo-colonialismo. Estão enganados.

É a medida moral o número de vítimas? Estimam-se mais de 700 mil deslocados, com condições de vida miseráveis, recordando que a assistência humanitária do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados chega a menos de 10% destas pessoas. Por isso, e diariamente, morre-se de fome, de cólera e de outras doenças. Não há direito a uma vida, quanto mais direito a outros direitos.

São as imagens em horário nobre das atrocidades ou a natureza das atrocidades, a medida moral? As lideranças destes grupos de refugiados relatam que, pelos caminhos por onde fogem, se encontram muitos corpos em decomposição e que são visíveis os massacres que ali tiveram lugar. As acções dos terroristas são violentas, muitas pessoas foram decapitadas, houve casas queimadas e aldeias destruídas. “É a dor de um povo”, dizem.

A morte por estrangulamento de um cidadão norte-americano mobiliza justamente o mundo, mas a decapitação de inúmeros cidadãos moçambicanos, o massacre de um povo, não?

São, então, as identidades das vítimas a medida? A violência contra os negros? Contra mulheres? Contra pessoas LGBTQ+? Contra crianças? Contra animais? Porque se é, em Moçambique estão todos a ser chacinados.

Fica demonstrado à saciedade que na barbárie não há direitos humanos. E, onde não há direitos humanos, também não há direitos de minorias. Não deixa de ser paradoxal, que uma sociedade global tão activamente mobilizada em torno de causas alegadamente de defesa de direitos das minorias, às mãos de políticas identitárias eminentemente excludentes, olvide de forma tão passiva duas verdades incontornáveis: a da igualdade entre os Homens, tal qual o artigo 2.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos no-la apresenta; e a de que, decorrente desta, em matéria de justiça e moral não há direitos das minorias, mas tão só direitos humanos.

Qual é a unidade de medida da nossa moral? E como é que essa medida nos impele a agir?

Não é tanto - mas é também - a de um apelo ao Governo português que inscreveu como propósito no seu programa "Preparar e realizar, no primeiro semestre de 2021, a Presidência Portuguesa da União Europeia, fazendo da relação entre a Europa e a África a sua prioridade fundamental", e do qual poucos ganhos concretos ainda se viram.

Não é tanto - mas é também - a de um apelo à União Europeia que, pelas palavras da Sr.ª Von der Leyen, assegurou que nos cabe “denunciar sempre as violações dos direitos humanos quando e onde quer que ocorram – seja em Hong Kong, seja com os uigures.” “Rápida e clara", disse ainda. Não é tanto - mas é também - a de um apelo a que os Estados e as organizações internacionais ponham acções onde normalmente põem palavras.

É, sobretudo, a de um apelo imperativo à tomada de consciência de que, se a perseguição, a destruição e o massacre acontece em Cabo Delgado - “em Hong Kong ou com os uigures” -, é também nosso o dever moral de intervir para alcançar a paz. E enquanto a ordem democrática e liberal prevalecer, “nós, o povo” teremos sempre uma palavra tanto mais ouvida, quanto mais maioritária e persistente for. Nem que o façamos ao som de um hino que diga, como o Trovante cantou há 30 anos, qualquer coisa como “Ai, Moçambique, calam-se as vozes dos teus avós/ Ai, Moçambique, se outros calam, cantemos nós”.