Opinião

Uma governação sem princípios

O respeito pelos princípios da bioética que têm norteado as sociedades ocidentais e, sobretudo, o respeito pela liberdade e autonomia do indivíduo como agente de escolhas racionais são torpedeados quotidiana e intencionalmente pelos nossos governantes, usando o medo e a manipulação sob a capa do imperativo da saúde pública, considera a professora universitária Catarina Maia

Os horrores da Segunda Guerra Mundial levaram-nos a várias reflexões enquanto sociedade, e ao nortear da evolução social à luz da ética. Compreendemos e é consensual nas nossas sociedades que os avanços científicos não podem ser feitos a expensas do respeito pela vida humana e pela liberdade do indivíduo. Aceitamos ainda que ninguém pode ser obrigado a ser tratado caso não o queira, e que, face a efeitos potencialmente danosos, deverá haver ponderações risco-benefício à luz dos factos científicos disponíveis.

Na bioética, há vários princípios basilares, entre os quais destaco três: beneficência, não-maleficência e precaução.

Desde logo, o princípio da beneficência, bonum facere. Este princípio, que pretende a realização do bem, evoluiu de uma visão paternalista em que o médico ordena e o doente cumpre, e é hoje articulado numa visão de diálogo com o doente, em que este é visto enquanto indivíduo que tem autonomia para decidir o que é melhor para ele e agir em consequência. Assim, é dever do médico explicar ao doente o que se vai passar em qualquer procedimento ou tratamento, com os seus riscos e benefícios, podendo o doente dar o seu consentimento informado.

O princípio da não-maleficência, primum non nocere, determina a obrigação de não infligir dano intencionalmente, de não fazer mal ao indivíduo. Os recursos que podem salvar também podem matar. O princípio da não-maleficência é o que dita que os fármacos não podem ser só usados pelo seu benefício, mas a sua segurança é, na verdade, crítica – sendo um dos primeiros parâmetros avaliados nas primeiras fases de ensaios clínicos.

O princípio da precaução será o mais recente dos princípios da bioética. Foi equacionado no contexto ambiental e definido pela primeira vez em 1992, na Conferência do Rio. O princípio da precaução afirma que, na ausência de certeza científica formal, a existência de um risco de um dano sério ou irreversível requer a implementação de medidas que possam precaver danos. O princípio da precaução foi oficialmente adotado pela União Europeia no Tratado de Lisboa. A aplicação deste princípio está condicionada à identificação de efeitos potencialmente negativos, à avaliação dos dados científicos disponíveis e à determinação da extensão das incertezas científicas.

Expostos os princípios, podemos perceber que várias questões éticas se levantam na gestão da pandemia.

Portugal dispõe de um Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), instituído pela Lei nº 14/90. Trata-se de um órgão consultivo pluridisciplinar, que tem por missão “analisar os problemas éticos suscitados pelos progressos científicos nos domínios da biologia, da medicina ou da saúde e das ciências da vida”. É surpreendente que não se conheça qualquer consulta feita pelo Governo a este Conselho sobre a gestão da pandemia - desde logo sobre os confinamentos, o uso de aplicações eletrónicas para rastreamento de contactos, ou o plano de vacinação. É ainda mais supreendente que não se conheça publicamente qualquer apelo no sentido da auscultação do CNECV por parte da bancada do PS, onde pontua Alexandre Quintanilha, reconhecido cientista que chegou a escrever sobre bioética durante a sua carreira na ciência.

A discussão ética na vacinação deveria passar pela priorização de populações e grupos profissionais (incluindo a vacinação de políticos, deputados, autarcas e dirigentes do Estado), a escolha da vacina (à medida que novas vacinas vão ficando disponíveis), a recusa da vacina, ou os passaportes de vacinação. Nada disto foi ou tem vindo a ser discutido, a não ser de forma superficial e reativa face a escândalos que vão saindo na comunicação social.

O último capítulo dos decisores políticos como reféns da opinião pública foi a suspensão da administração da vacina da AstraZeneca (AZ) pelo Infarmed. O Infarmed, que tem como missão regular e supervisionar os sectores dos medicamentos e produtos de saúde, fê-lo com base em relatos de outros países, que suspenderam a administração de lotes da vacina. Não desvalorizando estes relatos, verificamos que o número de casos de trombose em pessoas a quem foi administrada a vacina da AZ não é diferente do número de casos da população em geral, ou outras vacinas contra a covid-19. A Agência Europeia do Medicamento (EMA) está a analisar a situação, e informou que, de acordo com a informação disponível de momento, os benefícios parecem ultrapassar os riscos. O princípio da independência do regulador sucumbiu a leituras políticas: pressão da opinião pública, conivências políticas entre Infarmed e DGS por causa da escassez de vacinas?

Ora, o princípio da precaução não pode ser confundido com, nem pode ser desculpa para o imobilismo e para a inação. Não se pode entender o princípio da precaução como tendo de provar que algo é completamente seguro – tal é inalcançável. Aliás, essa é a antítese da vida – viver, de forma livre e responsável, envolve sempre correr riscos. Daí a importância da discussão ética nesta matéria: o que devem os portugueses saber sobre as vacinas e como podem ser informados de modo a tomarem decisões livres e em consciência?

Os portugueses são tratados como crianças, sem acesso a informação verdadeira e ponderada, expostos apenas a soundbites ditos em conferências de imprensa, onde governantes e altos funcionários do Estado veiculam frequentemente informações com clareza questionável. O respeito pelos princípios da bioética que têm norteado as sociedades ocidentais e, sobretudo, o respeito pela liberdade e autonomia do indivíduo como agente de escolhas racionais são torpedeados quotidiana e intencionalmente pelos nossos governantes, usando o medo e a manipulação sob a capa do imperativo da saúde pública – como se cada indivíduo não fosse, ele próprio, um agente de saúde pública. Uma governação sem princípios.