Com surpreendentes doses de conformismo (de todos nós), algumas consultoras especializadas em “Data Science” já alardeiam – triunfantes – que sabem quantos portugueses saíram à rua, quanto tempo lá ficaram, onde foram, se foram fazer compras ou se foram passear à beira-mar. Sabem com quem falamos; e pior, sobre o que falamos. Sabem onde estamos; e pior, a fazer o quê. Escutam o que dizemos; e pior, partilham apenas as opiniões de quem connosco concorda. Adormecem ao nosso lado, ocultas nos telemóveis e tantos outros equipamentos tecnológicos; e pior, gravam até os nossos mais íntimos sonhos e pesadelos.
O processo de normalização está em curso. A banalização da exposição permanente. A pretexto do combate à pandemia de Covid-19 medem-nos os passos. Até os aprisionam. Espiam-nos. Até nos gravam. Instrumentalizam-nos. Como se fossemos apenas mais um produto comercial, posto à venda, pelo preço mais alto.
Quem não se deparou já com o súbito aparecimento de um anúncio a um ar condicionado, nas suas redes sociais ou equipamentos eletrónicos, logo a seguir a ter conversado com amigos e familiares sobre o calor insuportável que enfrentava em sua casa? Sempre a pretexto da saúde pública, já houve até quem ousasse querer monitorizar-nos, através de aplicações eletrónicas. Claro está (na sua retórica sanitária), “apenas” para melhor combater a disseminação do vírus. O que vale é que é sempre “para nosso bem”…
Atiçados pela passividade generalizada e sedentos por nos espoliar das últimas réstias de liberdade individual, há agora quem queira aproveitar a quietude do confinamento para distribuir por Lisboa 216 (!) câmaras de videovigilância pública. A retórica pública? Combater essa (pretensa) perigosa criminalidade que todos enfrentamos no nosso dia-a-dia. O objetivo real? Habituar as pessoas, passo ante passo, a abdicarem do seu espaço de liberdade pessoal. Conduzi-las a aceitar a (a)normalidade de não poderem ser livres, sempre que saem de portas e se encontram no espaço público.
Vamos, então, aos factos.
Segundo o “Global Peace Index”, Portugal é o país mais seguro da União Europeia e o terceiro país mais seguro do mundo.
De acordo com os sucessivos Relatórios Anuais de Segurança Interna (RASI´s), a criminalidade geral tem vindo a diminuir, todos os anos (até 2019), e a criminalidade violenta reduziu-se em 42,5%, em apenas uma década (entre 2008 e 2019).
Durante a pandemia de Covid-19 – e a fazer fé em dados provisórios –, a criminalidade geral desceu 10% e a criminalidade violenta 11,4%.
Que razões há, então, para esta voragem “voyeurista”, por parte da Câmara Municipal de Lisboa?!?...
Como é evidente, a banalização da decretação de estados de emergência e a normalização da excessiva restrição das liberdades individuais, com a suspensão consecutiva – e a perder de vista – da mais elementar liberdade de agir (e de pensar) tornam tudo isto possível. Se há algo que resultou da crise foi a ditadura tecnológica e o reforço das “Big Tech”. Crise? Só para alguns. Enquanto muitos são forçados a ficar de portas fechadas ou a deixar os seus trabalhadores sem tarefas, outros prosperam. E muito. Os que se especializaram no comércio eletrónico (e à distância) – entre os quais, “Amazon”, “Alibaba” e “Wish” – os grandes transportadores mundiais de mercadorias que se adaptaram tecnologicamente – por exemplo, “Fedex”, “DHL”, “DPD Group” e “Chronopost” –, os que prosperam através do comércio de luxo – por todos, a portuguesíssima “Farfetch”, cujas vendas aumentaram 74%, em ano de pandemia – e, claro, os gigantes tecnológicos que monopolizam os “softwares” informáticos, as redes sociais e os motores de pesquisa de acesso livre e gratuito (?) – como a “Google”, o “Facebook”, a “Microsoft” e a “Apple”.
Enquanto isso, os poderes públicos – neles incluídos os governos nacionais e, até (!), as instituições europeias e internacionais – permanecem imóveis. Demitem-se da sua função dirigente e, mesmo, da sua função regulatória e supervisora. Faz algum sentido que as empresas de sondagens sejam obrigadas (e bem) a depositar junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) a respetiva ficha técnica e a garantir a anuência das pessoas sondadas, enquanto as empresas tecnológicas que compram e vendem os nossos dados pessoais – incluindo a nossa geolocalização – estejam completamente dispensadas de qualquer mecanismo que as controle e limite? Faz algum sentido que o Estado e as empresas tradicionais tenham sido espartilhadas por um kafkiano Regulamento Geral de Proteção dos Dados que as enche de (pseudo) rigor burocrático e que, em simultâneo, as “Big Tech” recolham livremente quantos passos damos num dia ou a nossa própria batida cardíaca, só porque utilizamos um telemóvel de última geração? E mais: alguém compreende que o Código Penal puna os crimes de devassa da intimidade privada e que a Constituição proíba a censura para que, depois, qualquer operador de telecomunicações ou qualquer rede social esteja permanentemente a escutar e a gravar tudo o que dizemos e fazemos, em privado, incluindo aquilo que jamais diríamos no espaço público?
Nenhuma polícia política, nenhum censor, nenhuma ditadura, alguma vez, ousou ir tão longe.
E os poderes públicos assobiam para o lado. Fingem que não sabem. Fingem que não veem.
Pior. Colaboram ativamente neste processo de mercantilização da nossa individualidade, do nosso pensamento livre e da nossa intimidade privada. Já não é raro ouvir (e ver) autarcas a aceitar viagens e hospedagem pagas em locais turísticos, para serem alvos de lavagem cerebral pelos que vendem o negócio das (ditas) “Smart Cities”. Esquecem (ou escondem…), porém, os seus riscos. E, agora, chegam ao ponto de acharem normal filmar-nos, enquanto namoramos em público, quando vimos passear o cão à rua, de pijama, ou quando fazemos piadas sobre políticos, patrões ou familiares.
Não, não me sinto inseguro.
Não, não quero que a nossa vida seja permanentemente monitorizada, espiolhada, esmiuçada. Enfim, esbulhada. Como se de meros ratos de laboratório nos tratássemos. Não estamos – e devemos lutar, todos, para que nunca estejamos – no centro de um filme de ficção científica, em que o respeito pelos padrões sociais maioritários é garantido através da repressão tecnológica e da constante espionagem e delação de cada um de nós.
Não, não me sinto seguro. Não me sinto seguro enquanto crescer este totalitarismo estatal e este puro fetichismo tecnológico que tolda a visão de quem (acha) que nos governa. Há que denunciar o erguer das ditaduras digitais, como corajosamente já fez Yuval Noah Harari.
Há limites para tudo.
Até para o uso da tecnologia.
Um desses limites é, precisamente, o direito ao seu não uso. O direito a desligar do ambiente tecnológico, sempre que o indivíduo disso precise. Ou seja, o já velhinho aforismo inglês do “right to be alone” (direito a estar sozinho) ou do “right not to be disturbed” (direito a não ser perturbado), que constitui a essência dessa liberdade negativa pela qual Isaiah Berlin tanto lutou.
É, precisamente, em tempos de provação e de medo que a nossa coragem coletiva se revela. É preciso reagir. É preciso não deixar que o (pretenso) combate à pandemia sirva de pretexto para eternizar medidas que nos despojam do mais humano que há em nós: a nossa individualidade.
Sorria!
Mas não deixe que a/o filmem.
Ou, pior. Que façam da sua vida um filme.