Portugal acordou há dias com a notícia de que tinha perdido a categoria de “país totalmente democrático”, segundo o índice da The Economist. E, lamento dizer, a culpa não foi dos populistas. Um país empenhado na preservação da qualidade das suas instituições, e para quem a Democracia e a Liberdade fossem realmente importantes, teria reagido de forma pronta e responsável a esta notícia. Infelizmente, o mesmo país cujas elites - e não os populistas, insisto - quebraram o consenso nacional no primeiro confinamento para celebrar o simbolismo democrático do 25 de Abril, ignorou-a olimpicamente, mantendo-se mergulhado na letargia que usualmente dispensa às coisas importantes.
Ignorou-a, salvo seja. Ainda houve quem, não sem razão, apontasse o dedo a este governo. Não sem razão, porque descontados os efeitos conjunturais negativos mas benevolamente compreensíveis do Estado de Emergência, a verdade é que o relatório aponta questões, por exemplo, como “a falta de transparência no processo de nomeação do presidente do Tribunal de Contas”. E a este episódio poderíamos nós ainda adicionar outros: a substituição da Procuradora-Gera dal República, a tortura e morte do cidadão ucraniano às mãos do SEF e a forma como a Administração Interna lidou com a situação, o mais recente episódio da nomeação para a Procuradoria-Geral Europeia, ou ainda o fim dos debates parlamentares semanais. Mas já lá vamos. Primeiro, um pouco de história e de ciência política; com a promessa de não vos maçar muito.
Portugal foi o primeiro de um conjunto de países que, a partir de 1974/75, deram corpo àquilo que ficou conhecido, no mundo, por 3.ª vaga de democratização. Este baptismo deve-se a Samuel Huntington, que define essa transição em torno de cinco assumpções que vale a pena revisitar: a de que i) qualquer país afastando-se de uma ditadura pode considerar-se em transição democrática; a de que ii) a democratização tende a ocorrer em três fases – abertura, avanço e consolidação; iii) a importância decisiva de eleições; a convicção de que iv) qualquer país, independentemente do seu passado, pode transitar para a democracia; e de que v) as transições democráticas da terceira vaga estão a ser alicerçadas em Estados coerentes e funcionais.
Podemos ter, em Portugal, em bom juízo, a certeza inequívoca de estarmos no bom caminho? Simplificando: podemos afirmar com segurança que Portugal, 45 anos depois do 25 de Novembro, está em fase de consolidação da democracia, alicerçada num Estado coerente e funcional?
Se é verdade que temos um país com espaço para partidos de oposição, para uma sociedade civil independente, com eleições regulares e uma constituição democrática, não poderemos afirmar também que temos fraca representação dos interesses e baixa participação política dos cidadãos para lá das eleições, abusos da Lei por parte do Governo, e uma confiança cada vez menor num Estado com um desempenho cada vez mais fraco? Esta descrição, que forcei à realidade portuguesa, é na verdade o diagnóstico de um outro cavalheiro, chamado Thomas Carothers, que desenvolveu, para países como Portugal em processo de transição, o conceito de grey zone (zona cinzenta) .
De acordo com Carothers, de quase 100 países considerados "em transição" nos últimos anos, poucos - provavelmente menos de 20 - estão claramente a caminho de se tornarem democracias bem-sucedidas e funcionais. Os outros, quando não em regressão activa para autocracias, no melhor cenário estão nesse estado – na grey zone – que se caracteriza por duas síndromes; a saber: i) pluralismo frouxo e ii) semi-autoritarismo de um partido. A primeira define-se, por um lado, por liberdade política significativa, eleições regulares, alternância entre partidos no poder, mas por outro, por participação política deficiente, elites corruptas, governos ineficazes com fraco desempenho e sociedades divididas e desiguais. Na segunda temos um grupo político dominante, uma fronteira ténue entre o Estado e o partido dominante, poder judiciário não independente, processos eleitorais ambíguos, participação política deficiente, oposição liderada por ONGs com sede no estrangeiro, uma burocracia estagnada, corrupção de larga escala e crony-capitalism.
Diria que Portugal, na sua singularidade, exibe características misturadas de ambas as síndromes; uma espécie de, para usar a terminologia da moda, variante portuguesa do vírus. Temos uma participação política deficiente, practicamente só em torno de partidos, e com taxas de abstenção crescentes em todas as eleições; vários casos de corrupção das elites, não só políticas, que tardam em transitar em julgado; governos ineficientes com fraquíssimo desempenho, que têm afastado o país da média de riqueza europeia, marcados por nepotismos e clientelismos vários; um partido - o PS - vocacionado para se tornar no pivot inamovível de um single-party system; um assalto insistente e impune aos lugares do Estado, não apenas nos cargos administrativos, mas também nos órgãos independentes e reguladores; uma tentação de politização da justiça com processos pouco transparentes e sem grande escrutínio; uma burocracia anquilosante da actividade económica; uma Administração Pública estafada, sem prémio do mérito, hiper-hierarquizada, e nada motivada; índices de percepção de corrupção que nos aproximam mais do Burkina Faso que da Finlândia; e um crony-capitalism, onde as compras públicas são essenciais para a subsistência de muitas empresas, e onde as nacionalizações voltam a ser tema, como o recente caso da TAP exibiu clamorosamente.
Com este diagnóstico vale a pena, em Portugal de 2021, voltar a 1980. Dizia Sá Carneiro que “uma democracia que não se defende vigorosamente não tem o direito de sobreviver.” Essa defesa cabe-nos a todos. Cabe-nos sempre. Seria bom que não desistíssemos da Democracia e da Liberdade. A alternativa é sempre pior.