Opinião

As vacinas e o espantalho das patentes

O problema do atraso no fornecimento de vacinas é um problema de capacidade de produção, não de abuso de posição dominante no mercado. A gestora e professora universitária Catarina Maia, membro da Comissão Executiva da Iniciativa Liberal, diz que as vozes que se erguem por esta solução estão a agitar um espantalho, que é sexy de empunhar, alimentando-se do desconhecimento do público sobre ele, no pano de fundo de um capitalismo pintado como opressor e mortífero – no fundo, um exercício fácil de demagogia

Num artigo recente, Carmo Afonso, advogada, vem dizer que parte do problema com a vacinação não chegar aos países mais pobres é a “lógica de mercado”, e que é necessário “libertar as patentes” sobre as vacinas porque estas são um bem público. Este artigo ecoa, aliás, um outro, escrito por Inês Alves Monteiro, também ela jurista, que pretende fazer a ligação entre a inexistência de licenças obrigatórias das patentes e o capitalismo como pai de todos os males da humanidade (e, claro está, da covid-19). Enquanto os países em todo o mundo tentam obter doses suficientes das vacinas recentemente aprovadas contra a covid-19, estas opiniões são meros ecos de uma visão internacional, que pretende levar-nos a acreditar que as patentes são responsáveis pela escassez de doses. Esta visão é defendida por figuras influentes, como Bill de Blasio, mayor de Nova Iorque, ou Dimitris Papadimoulis, deputado europeu pelo Syriza e vice-presidente do Parlamento Europeu.

Para o leitor mais desatento, e que não esteja familiarizado com a temática da inovação e da propriedade intelectual, esta lógica parece fazer todo o sentido. Porém, estas opiniões são infundadas e enfermam de preconceitos.

As preocupações sobre o potencial das patentes na obstrução de respostas de saúde pública à pandemia emergiram logo em março de 2020. Ao longo do ano, assistimos a diversos pedidos para que medicamentos relacionados com o SARS-CoV-2 fossem tratados como um “bem público global”, sendo as patentes consideradas como uma barreira potencial à produção e fornecimento de medicamentos. Lançaram-se diversas iniciativas para promover o acesso aberto a patentes (como a WHO Covid-19 Technology Access Pool), e houve propostas para a suspensão do mais importante acordo internacional em matéria de propriedade intelectual – o TRIPS. Isso era necessário, afirmava-se, para garantir o fornecimento adequado de vacinas, especialmente para países subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimento.

Nenhuma das principais empresas concordou em tornar as suas patentes um “bem público”, mas foram dados passos para garantir o acesso às vacinas. A Moderna Therapeutics tomou o compromisso de não processar judicialmente empresas que queiram comercializar os seus fármacos contra a covid-19. O consórcio AstraZeneca/Oxford University comprometeu-se a não ter lucro e contratualizou um grande número de parcerias de produção em todo o mundo. A Pfizer/BioNTech, tal como as outras, comprometeu-se a fornecer doses acessíveis a países subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimento.

Apesar de todo o pânico em relação às patentes, estas não são o verdadeiro obstáculo que afeta o acesso à vacina. Com várias vacinas aprovadas em diversas geografias, e com as empresas a produzir um grande número de doses, mesmo os países desenvolvidos continuam com problemas em obter doses suficientes. Na UE, tal culminou nas recentes trocas de acusações entre a Comissão Europeia e a AstraZeneca, que vieram colocar a nu algo que ia sendo do conhecimento público: encomendaram-se poucas doses, tardiamente, e negociaram-se maus contratos.

O grande problema está na produção destas vacinas. Não basta ser uma empresa farmacêutica para produzir estas vacinas – é muito diferente produzir mRNA ou um qualquer medicamento para o colesterol a partir de síntese química. Todas as vacinas atualmente aprovadas na EU (e mesmo a Sputnik V, que a Hungria equaciona administrar) baseiam-se em tecnologias inovadoras, produzidas através de complexos processos biotecnológicos com grandes variabilidades de rendimento, e que, frequentemente, levam anos (e não meses) a serem implementados. Por seu lado, também os ingredientes destas vacinas são disponibilizados por uma intrincada rede de fornecedores. Uma vez as vacinas produzidas, a cadeia de distribuição pode ser particularmente exigente, sobretudo havendo necessidade de manutenção de temperaturas negativas.

Para tentar ganhar escala na produção e distribuição, estas farmacêuticas já estabeleceram diversos contratos com empresas que têm capacidade de produção, através de parcerias bilaterais: a Sanofi vai produzir 100 milhões de doses da vacina da Pfizer/BioNTec, e a Novartis concedeu acesso à BioNTech a uma das suas fábricas na Suíça.

Assim, o foco internacional deve ser em reduzir barreiras contratuais e aduaneiras para que a AstraZeneca, a Moderna e Pfizer/BioNTech (bem como os fabricantes de outras vacinas que podem ser aprovadas em breve) possam aumentar as suas parcerias de fabrico – expandindo para onde ainda é possível - e fortalecer as suas cadeias de abastecimento transfronteiriças, produzindo mais doses e fazendo-as chegar a mais pessoas.

Aqui chegados, é fácil compreender que os Estados não têm, eles próprios, capacidade de produção destas vacinas, e que teriam sempre de recorrer às empresas farmacêuticas para o fazer. Portanto, na perspectiva da patente pertencer ao Estado, este teria de a licenciar a empresas para as produzir e comercializar. Ora, se o negócio não for atrativo, não há quem produza. Outro aspecto a ter em consideração é que, sendo a patente do Estado, ela seria de um país – país esse que teria na sua mão um possível instrumento de poder geoestratégico que, no limite, poderia disponibilizar apenas aos seus aliados.

Não deixa de ser curioso verificar que as vozes contra as patentes não se levantam para questionar a perspetiva ética da contratualização que diversos Estados fizeram das doses de vacinas, nalguns casos muito acima das suas necessidades. Deveriam os Estados que têm poucos casos e taxas de infeção reduzidas considerar vacinar as suas populações de risco e ceder parte das vacinas que contratualizaram a outros Estados, em que a situação é mais crítica? A Austrália, por exemplo, contratualizou o abastecimento de doses de vacinas suficientes para vacinar três vezes a sua população, e tem uma incidência relativamente baixa da doença.

Haverá ainda o argumento que patentes não deveriam existir – pelo simples facto de que concedem um direito que exclui outros do mercado. Sem entrar em grandes detalhes, na indústria farmacêutica as patentes constituem o mecanismo que permite às empresas investir muito dinheiro em inovação, com alguma certeza de apropriação de retornos. Por cada 10.000 novas moléculas sintetizadas, apenas 1 chegará ao mercado. Tal implica um enorme investimento em I&D. Sem patentes, à medida que as moléculas vão sendo publicadas nos dossiers regulamentares, poderiam ser copiadas por qualquer empresa – o incentivo à inovação desapareceria.

No fundo, na atual situação, com problemas de produção e distribuição, em face dos compromissos públicos das empresas produtoras de vacinas para com os países em vias de desenvolvimento, as licenças obrigatórias de patentes teriam pouco ou nenhum impacto – desde logo, porque estamos perante um problema de capacidade de produção, não perante um problema de abuso de posição dominante no mercado. As vozes que se erguem por esta solução estão a atacar o problema errado, a agitar um espantalho que não terá qualquer efeito. Porém, este espantalho é fácil e sexy de empunhar, alimentando-se do desconhecimento do público sobre ele, no pano de fundo de um capitalismo pintado como opressor e mortífero – no fundo, um exercício fácil de demagogia.