Opinião

A tempestade dura e não estamos no mesmo barco

Pedro M. Teixeira*

A pandemia intensificou várias fragilidades e incongruências da nossa sociedade, que corroem gradualmente o nosso tecido social. Este é o tempo de as identificar e corrigir e não de as varrer para debaixo do tapete. E o motivo é simples: o tapete está furado.

A análise dos erros que têm sido cometidos não pode ser deixada para depois, sob pena de não se ajustar o rumo. Para tal, Portugal precisa de um Centro de Controlo de Doenças que numa abordagem de complementaridade multidisciplinar reúna especialistas que a tempo inteiro se dediquem a aconselhar o governo e a gerir esta pandemia. Um centro que se dedique à promoção da saúde, à identificação, controlo e prevenção da doença e ao aumento da literacia em saúde.

A criação e sustentação de um sistema de monitorização regular, abrangente e ágil que se caracterize pela intervenção organizada com diferentes entidades e com capacidade de adaptação e celeridade na resposta informada pela melhor evidência científica disponível são qualidades fulcrais num Centro de Controlo de Doenças. A perspetiva de gerir uma pandemia apenas com política e conferências de imprensa é ilusória.

A leitura de que a não adesão a medidas impostas de contenção da pandemia se possa dever a dessensibilização face ao risco ou a perda de medo por parte da população pode revelar-se simplista e algo ingénua. Não é de medo que precisamos: é de tranquilidade. Apenas com tranquilidade poderemos analisar de forma correta os sinais do que estamos a viver e discernir os caminhos apropriados. Como dizia Viktor Frankl: ‘pode-se tirar tudo a uma pessoa exceto uma coisa: a última das liberdades humanas – escolher a própria atitude em qualquer circunstância, escolher o próprio caminho’. A não adesão às medidas de contenção da pandemia é uma realidade bastante complexa, com várias tonalidades emocionais associadas, onde cada pessoa escolhe livremente a sua atitude e caminho a seguir. E essa liberdade não confinável.

Acontece que estamos a passar pela mesma tempestade, mas não estamos no mesmo barco.

Não se pode desvalorizar o impacto que a pandemia teve, tem e poderá ter na sociedade. Não será a procurar transmitir boas notícias, quando elas não existem, que conseguiremos reforçar o contrato de confiança social de que tanto precisamos (veja-se o que nos trouxe o encanto com a chegada das vacinas). Estas têm de ser devidamente ajustadas à realidade.

No entanto, a exposição continuada a imagens e relatos de doença, sofrimento e morte associados à pandemia acarreta, neste momento, o risco de impactar negativamente na saúde mental e provocar dano a uma parte considerável da população. E não contribuir para aumentar a adesão às medidas de contenção da pandemia. Falar verdade apenas não basta. Por outro lado, não será apenas com a mera deliberação e comunicação de medidas duras e, por todos, indesejadas que se reforçará a confiança da população.

Mais do que imposição precisamos de cooperação, o que requer clarificação de papéis, transparência, comunicação atempada e envolvimento da população. Importa identificar e reconhecer erros para recuperar credibilidade, sem jogos de culpabilização. Tanto os erros que já foram corrigidos, sem serem assumidos como tal, como os que ainda estão por corrigir.

Não se pode fazer apelos sem primeiro reconhecer o tremendo esforço e sacrifício envolto nas medidas que estão a ser pedidas e impostas às pessoas. Não se trata de ficar em casa no sofá a ver televisão. Trata-se de perder rendimentos, de perder trabalho já de si, muitas vezes, precário. Não é apenas a morte que assusta. Perder a perspetiva de como viver é igualmente aterrador. Trata-se de perda e de perda atroz. Importa criar condições para minimizar essas perdas. Importa apontar o caminho da esperança. Sem ilusões. Enquanto alguns estão confortavelmente no sofá do barco, muitos estão a cair da jangada.

Ignorar isto será, possivelmente, o maior erro que se pode cometer na gestão da pandemia.

* Pedro M Teixeira - Professor da Escola de Medicina da Universidade do Minho, psicólogo e investigador na área da Saúde das Populações