Opinião

Saudades

Temos saudades de ser livres, uns dos outros, da vida que tínhamos, de não correr riscos se decidirmos tocar em alguém, de não fazer alguém correr riscos com a nossa aproximação. Saudades de tossir sem assustar ninguém, de dançar, de não temer o futuro e de todas as banalidades possíveis. Foi um ano muito duro e tudo no passado, que é bem recente, parece extraordinário. Só que não é nada verdade

Costuma dizer-se que “saudade” é uma palavra que existe apenas na língua portuguesa. Fui confirmar e parece que não é assim. Existe em amárico, existe em árabe, em galego e discute-se se “sawadah”, termo árabe para melancolia (não saudade), terá influenciado o sentido da palavra latina na Península Ibérica. Já agora, em romeno a palavra "dor" tem o mesmo significado que saudade.

Também costuma dizer-se que é um sentimento muito português, uma nostalgia que nos assiste e que ultrapassa a da literal “falta do outro” ou a da falta de alguma coisa. Se era verdade deixou de ser. Existem milhões de pessoas pelo mundo fora a sentir uma coisa à qual, parte delas, não é capaz de dar um nome.

Nós somos de certeza. Nós temos saudades.

Temos saudades de ser livres, uns dos outros, da vida que tínhamos, de não correr riscos se decidirmos tocar em alguém, de não fazer alguém correr riscos com a nossa aproximação. Saudades de tossir sem assustar ninguém, de dançar, de não temer o futuro e de todas as banalidades possíveis.

No processo em que se recorda o passado existe uma tendência para o melhorar. Miguel Esteves Cardoso chamou-lhe optimismo do passado. Neste momento temos a vida muito facilitada no que diz respeito a sermos optimistas com o passado. Foi um ano muito duro e tudo no passado, que é bem recente, parece extraordinário. Só que não é nada verdade.

Fernando Pessoa, digo Bernardo Soares, no “O Livro do Desassossego” escreveu sobre a saudade e disse que as mais fortes eram aquelas que se sentiam daquilo que nunca se viveu: “Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!”

É precisamente daquilo que nunca vivi que sinto mais saudades. Sentir saudades daquilo que nunca se viveu é ter uma visão, ou uma crença, num mundo melhor ou, pelo menos, noutra coisa.

Escolhi dois autores magníficos e nenhum deles é de esquerda. Não foi uma dificuldade e foi uma intenção. Hoje vamos assim.

O mundo em pandemia é um mundo suspenso e não se sabe bem o que vai acontecer a seguir. Existe uma expectativa de que volte a ser como era mas a verdade é que o futuro é incerto. Diria que não voltaremos ao mesmo mundo e que não se perde grande coisa. A sério, as coisas não estavam assim tão bem.

O capitalismo falhou. As várias tentativas de governação de esquerda, e não falo da que convive bem com o liberalismo, falharam.

Não existe nenhuma possibilidade séria de contrariar isto.

Viver na Europa permitia não dramatizar muito estas constatações. As falhas das tentativas de governações de esquerda não partiram todos os corações e, os que se partiram, cedo se recompuseram pois afinal não passaram de tentativas mal conduzidas. Quanto às falhas do sistema capitalista, elas são sobretudo sentidas pelos que ficaram excluídos dos seus privilégios ou pelos que, não fazendo parte desse grupo, não se conformam com a vida num sistema que tem privilegiados e desfavorecidos. Sim, a luta contra o capitalismo desregulado e obscuro não é só uma luta dos pobres é também a dos que, não sendo, acreditam num equilíbrio que não deixe ninguém de fora.

Usei o pretérito imperfeito do verbo “permitir” porque já não é verdade que viver na Europa permita não dramatizar as falhas do capitalismo. Está à nossa frente e chama-se ascensão da extrema-direita a uma das grandes consequências desta forma de organização. Há outras.

Já lá estivemos alguma vezes, voltámos.

Para quem vive no Médio Oriente (em África também mas de uma maneira e com uma intensidade diferentes) a visão do sistema global dominante pode causar raiva e, mais do que raiva, ódio. Um sistema que foi lá extrair recursos naturais, fazendo acordos com alguns mas deixando sempre o povo de fora, que derrubou regimes, que inventou inimigos ditadores e que inventou heróis, que fez invasões, que inventou armas químicas e que deixou morte e destruição. A situação mantém-se. Não é que possamos falar disto com o conforto da distância e do “já passou”. Não passou.

A este propósito recomendo que tirem umas horas para ver o documentário do Adam Curtis, o “Hypernormalisation”. Adam Curtis é, entre outras coisas, um jornalista do género “rato de biblioteca” que viu mesmo tudo e que leu mesmo tudo – no sentido de “até ao fim de cada vídeo, de cada declaração” - e que, dessa forma, consegue efectivamente mostrar-nos aquilo de que fala. Não precisamos de confiar nas suas conclusões, não é sobre isso. É uma mistura inteligente entre a narração documentada de factos uma estética que vai além da beleza – não sei como se vê a si próprio mas é inevitável vê-lo também como um artista – e uma escolha de músicas que provocam encantamento, que se repetem ao longo da narrativa, e que acrescentam muito ao processo de interiorização da informação ali relatada.

O relato começa em 1975, ano de grande crise económica nos Estados Unidos, a que permitiu a entrada dos bancos (credores) na política. Nova York, uma cidade endividada, passou a ser dominada pelo sistema bancário. O poder político, aquele que procura o bem comum ou que o deveria fazer, ficou sujeito ao domínio dos bancos, aqueles que procuram o lucro. O que naquela altura foi aparatoso nunca chegou a ser completamente resolvido e, no mundo ocidental, em que nos incluímos, o poder dos bancos na vida política continua a revelar-se.

Foi nesse contexto que Trump ganhou protagonismo: investindo quase nada conseguiu comprar e reabilitar os prédios que escolheu com recurso ao financiamento dos bancos e com o maior acordo de benefícios fiscais da história de Nova York: 160 milhões de dólares. O sonho americano é maravilhoso.

A partir dali começa uma farsa, a da morte da política. A comunicação deixa de ser fiável e passa a ser manipuladora com a função de distrair as pessoas, impedindo-as de distinguir o que é inventado do que é real, a busca do bem comum é esquecida por quase todos. Espreitem. Garanto, a quem não viu, que será dos melhores momentos de 2020. Verdade que a fasquia não está alta.

Ver esse documentário obriga, é uma palavra forte mas penso que sim, a reflectir sobre alguns aspectos do passado pré-pandemia que revelam que as coisas não estavam assim tão bem.

Teatro Bataclan, 13 de novembro de 2015, sexta-feira à tarde. Um fuzilamento e ataque suicida perpetrado por jovens muçulmanos durante um concerto matou 89 pessoas, número que inclui os próprios. Estavam num concerto. Eram pessoas inofensivas que se estavam a divertir. Pessoas completamente alheias à raiva e à sede de justiça que levou rapazes e raparigas muçulmanos a prepararem aquele ataque e a levarem-no até ao fim sem hesitações e apenas com um objectivo: matar o maior número de pessoas possível.

A questão é que viver-se alheado da realidade, ainda que sem essa intenção, não nos protege dela. É infinito o que separava os jovens muçulmanos dos que estavam ali a divertir-se mas o acaso e a raiva juntaram-nos na pior das formas.

Sim, no meio de festas, de concertos, em eventos desportivos, nos transportes públicos, pairava sobre nós a ameaça de um atentado terrorista.

De onde vem tanta raiva? Porque existem alguns muçulmanos com vontade de aniquilar o mundo ocidental? As respostas são imensas. Dá mesmo para fazer uma lista. É preciso desmantelar as redes que radicalizam, treinam e militarizam estes rapazes e raparigas prontos a matar e a morrer mas é também preciso fazer uma reflexão sobre o que nos fez chegar até aqui e como se poderá encontrar uma solução.

Isto aplica-se à maioria dos problemas que as democracias ocidentais enfrentam como é bom exemplo a ascensão da extrema-direita populista e fascista. Tem que se reflectir seriamente no porquê de políticos como Trump, Bolsonaro e o caso português terem conseguido, com argumentos que parecem pôr em causa a inteligência de qualquer pessoa, motivar e cativar massas. Cá com pouca expressão, para já. A verdade é que – sem descontentamento e raiva generalizados – são “projectos” que podem implodir sozinhos. O Chega deveria chamar-se “saco de gatos”.

O primeiro passo será sempre descobrir e encarar as razões pelas quais as pessoas sentem tanta raiva. O crescimento da extrema-direita é sobretudo raiva e descontentamento. E as pessoas que caem na armadilha não são estúpidas. É mesmo um erro partir desse princípio porque não é verdade – a vida ensina que as pessoas são finas como o azeite e que essa finura (inteligência) não tem a ver com habilitações literárias ou com uma experiência de vida urbana – e porque essa posição só acentua o fosso que a extrema-direita pretende aprofundar. E sim, a raiva e o medo cegam as pessoas e transformam-nas noutra coisa.

Estes problemas são os filhos bastardos de um sistema global que tem uma natureza predatória mas altamente hipnotizante. Desde que existe capitalismo que existe luta anticapitalista mas a luta nunca conseguiu grandes resultados. O capitalismo tem conseguido integrar as lutas anticapitalistas no seu próprio funcionamento.

Neste aspeto, o capitalismo é muito parecido com o ego, um conceito da teoria psicanalista que, neste caso, poderia ser substituído por vaidade. Ambos, o capitalismo e o ego, encontram sempre uma forma, um sítio, para se alojarem.

A ver.

Num jantar nos Estados Unidos assiste-se a conversas sobre quanto é que um advogado ganha por ano e, com uma grande ligeireza, alguém pode perguntar quanto ganha um advogado por ano em Portugal. Há ali a vaidade de fazer dinheiro e a confusão entre o valor de uma pessoa e a prosperidade financeira que conseguiu alcançar.

Na Europa há outro clássico: é bastante provável assistir a uma conversa onde se discute cinema libanês ou artistas emergentes. Também é bastante provável que alguém pergunte se se viu determinado filme ou se se conhece um artista que na verdade é bastante desconhecido. Há aqui vaidade no conhecimento e a confusão entre o valor de uma pessoa e os conhecimentos que revela.

É sempre ego mas disposto em prateleiras distintas.

Nos processos individuais o mesmo princípio.

Começa-se por ter vergonha de nascer numa família muito humilde (e isto é ego). Essa vergonha é ultrapassada e finalmente uma pessoa, que não o fazia, assume que vem de uma família humilde e que a sua infância não foi nada de especial. Muito rapidamente o ego instala-se nesse acto de coragem e de verdade. A pessoa em causa diz – não com a simples objectividade que um relato exige mas como se isso lhe acrescentasse algum valor – que vem de uma família muito humilde e que nunca fez uma viagem de avião com os pais.

É tramado.

O capitalismo é igual. Quando se acha que se está a combatê-lo pode-se simplesmente estar a contribuir para a sua evolução, o que o tornará ainda mais forte. O capitalismo acomoda tudo: a luta feminista, os movimentos artísticos mais radicais, até os símbolos da esquerda. Nada como comprar uma t-shirt com a fisionomia do Fidel Castro impressa ou uma frase revolucionaria como: “Protest and Survive”. Tive uma. Com os anos o algodão ganhou uma textura perfeita para dormir.

De que temos então saudades?

De muitas coisas boas que só são apreendidas assim porque nos abstemos de tomar consciência da parte que está mal ou seja da realidade.

Mas isto dura tão pouco. A realidade é muito teimosa e às vezes faz aparições memoráveis e que não estavam nada no guião. Tem feito imensas nos últimos dez anos e ficámos sempre surpreendidos.

2020 foi um bom exemplo.

Uma máscara passará a ser um símbolo da saudade, um símbolo perfeito; literalmente preso por fios à nossa cabeça.

Nota: faz algum sentido que Adam Curtis, os Massive Attack e Banksy (não se sabe ao certo quem é, eventualmente Robert del Naja ou um grupo anónimo de artistas) formem um coletivo organizado na luta pela revelação das fraudes do capitalismo e na luta contra o próprio sistema. É reconfortante pensar que sim. Só a luta em grupo poderá ser eficaz, nunca a luta individual. Adam Curtis diz que essa é a diferença entre ter poder e ter influência. Terão poder. Já uma colunista que tenha o mesmo objetivo apenas poderá ter influência. Não chega.
E, já agora, Fernando Pessoa sendo um individualista, tinha em si tantos indivíduos que podemos chamar-lhe um coletivo.
Não, não era de esquerda.