Às vezes queria ser outro. Aquele homem que, da minha janela, vejo a caminhar sobre a relva, vindo lá de baixo, talvez dos armazéns junto ao canil municipal ou da paragem de autocarro. Invejo-lhe coisas incertas, que desconheço: o horário, o trabalho – qual? O que invejo é a incerteza. Imagino-o amnésico, um ser sem passado e de futuro vago. Invejo apenas este momento em que o vejo a atravessar o meu campo de visão e não o que ele deixou para trás nem o que vai encontrar porque tudo isso é já demasiado concreto, uma vida como as outras, com os seus objetos sólidos, os seus sólidos deveres e o que quero é o que não posso tocar.
Exclusivo
Eu, o outro
Uma crónica sobre o mundo tal como o desconhecemos, dos grandes temas da atualidade às questões insignificantes do quotidiano. Todas as quintas-feiras nos Exclusivos do Expresso