Opinião

Carta de um cidadão comum preocupado com as queixas do senhor Bastonário da Ordem dos Médicos

Exmº Senhor Bastonário da Ordem dos Médicos,

Espero que esta carta o encontre bem de saúde e que não leve a mal estas humildes e despretensiosas linhas que lhe escrevo. Tomo a liberdade de me dirigir a Vª Exª para lhe pedir que, na medida do possível, evite nos tempos mais próximos fazer declarações públicas, as quais, não resolvendo nenhum dos problemas que denuncia, agravam o estado de ansiedade e de insegurança de boa parte dos cidadãos.

É capaz de não acreditar, mas saiba Vº Exª senhor Bastonário que as últimas vezes que o vi a falar nas televisões o meu ritmo cardíaco disparou perigosamente. A primeira vez não levei a sério, pensei que fosse coincidência. Mas não: os sintomas agravaram-se nas ocasiões seguintes. Se eu fosse mal intencionado diria que o senhor me faz mal à saúde. Em rigor talvez devesse dizer as suas declarações, embora, convenhamos, no seu caso, ator e atuação fundem-se na mesma entidade e performance.

Perdoe-me a ousadia de cidadão comum, mas não imagina como eu e várias pessoas das minhas relações andamos ultimamente tão temerosos. Não é caso para menos: à preocupação inicial com o vírus — que ainda por cima dizem-nos que é inteligente —, junta-se agora o medo provocado pelas suas palavras, que em doses regulares, como nos antibióticos, nos são ministradas através dos media.

Se calhar não dá conta, mas de cada vez que fala só lhe ouvimos queixas e denúncias de que está tudo mal — e se calhar está. Quem sabe, até, se o senhor Bastonário está certo nas previsões que leio nas entrelinhas das suas declarações e rosto pesado, de que se tivermos o azar de sermos infetados e cairmos numa cama hospitalar o melhor é encomendar logo a extrema unção. Bem sei que é um exagero, isto que digo, palavreado de homem comum, descomprometido e leigo na matéria. O senhor Bastonário jamais diria uma coisa nestes termos. Mas se deixarmos os punhos de renda das palavras à porta, tudo aquilo que anda a dizer — mesmo quando os números, sempre provisórios, mas apesar de tudo ainda longe da gravidade que recentemente se projetava — está longe de prestar um serviço à sociedade. Como seria seu dever ético e profissional. Tem de haver uma diferença entre o humor desgovernado das redes sociais e a atitude de responsabilidade institucional que o momento atual exige.

Em tempos complexos, difíceis e imprevisíveis como o que vivemos, concordará comigo se eu disser que precisamos de lideranças clarividentes e menos politiquice em campo.

Se o que espera cada um dos muitos cidadãos que, fatalmente, terão de ser tratados nos hospitais é o cenário apocalíptico que Vª Exª vai transmitindo em cada intervenção pública que faz, já imaginou o desassossego e ansiedade que lhes está antecipadamente a causar?... Não, não vale aqui o argumento de que importa denunciar e criticar o que está mal ou é insuficiente. No atual contexto, essas denúncias devem ser feitas para dentro, para que os efeitos se sintam cá fora. E não o inverso. Provavelmente nem se dá conta. Repare nesta recente troca de palavras num dos jornais da RTP:

— Diz o jornalista: “Os números atuais são positivos”. Ao que o senhor responde: “Os números são preocupantes”. Pergunta o jornalista: “Porquê?”. Eis a sua argumentação: “Estamos no 27º ou 28º dia da pandemia. Por esta altura não havia tantos casos em Itália nem em Espanha”. O jornalista volta à carga: “Mas em Portugal as medidas de prevenção foram tomadas mais cedo do que noutros países”. Na impossibilidade de contrariar o óbvio, o senhor Bastonário responde: “Mas poderiam ter ido mais longe”. O diálogo prosseguiu e o sentido das suas palavras azedas também, repisando “as milhares de chamadas” que recebe sobre a escassez de meios e equipamentos. E depois vemos os diretores de serviço ou clínicos do Curry Cabral e do S. João garantir que os meios existem.

Em última instância, os cidadãos querem ver e perceber que quando se diz que “estamos todos no mesmo barco” (por muito discutível que seja a metáfora) isso é verdade e autêntico. Quando milhares de potenciais infetados escutam as queixas e desconfianças permanentes do senhor Bastonário para com as instâncias que os hão de tratar, como pensa que todos nós nos sentimos? Que impacto imagina que tais palavras e comportamento têm em nós? Já pensou nisso, nos intervalos do combate político que vem travando? Há dias dei comigo a pensar onde é que Vª Exª aceitará ser tratado, se por um infeliz acaso também for infetado...

Como cidadão, não considero prioritário neste momento discutir o que poderia ou deveria ter sido feito antes. Não é este o tempo para confirmar se as balas estão dentro do prazo de validade. Também não é tempo para ressentimentos — aprendamos com Cuba, que enfrenta um embargo há 60 anos e mesmo assim enviou médicos para Itália.

Estamos de acordo que muito poderia e deveria ter sido feito antes, pois claro. Não deixa de ser irónico, aliás, observar que algumas vozes que hoje tanto se afadigam, escandalosas, a denunciar as fragilidades do SNS nunca tenham mexido um dedo na sua defesa. Reconheço, é claro, que muitos colegas seus — e o senhor episodicamente — vêm defendendo, sem êxito, a necessidade de se dotar o SNS de meios e condições. Não o tendo sido, incentivo-o, após esta crise pandémica, a estar na primeira linha da defesa de um SNS consistente, universal e que seja, de facto, como o atual Governo prometeu algures, uma séria prioridade nacional.

Nessa altura sim, como cidadão ficar-lhe-ei muito grato que defenda até às últimas consequências a aplicação de uma política de saúde pública que nos dignifique como povo e nação e me faça sentir orgulho no Bastonário que sabe distinguir o momento da crise do momento do combate político. E, sobretudo, que é capaz de estar do lado certo da História.

Na expectativa do melhor acolhimento, creia-me com toda a estima e consideração.