Opinião

Somos os extraterrestres nesta “guerra dos mundos”

Ao mudarmos as nossas condições de vida de uma forma tão rápida, por exemplo aumentando a capacidade de viajar de formas mais rápidas e mais baratas, ou aumentando tão rapidamente a densidade populacional humana, provoca um efeito idêntico a uma invasão - somos nós os extraterrestres. Estamos a ser vítimas do nosso próprio sucesso.

Francisco Dionísio

Nesta pandemia, o covid-19 infeta todas as pessoas, mas é letal especialmente para a faixa etária dos mais velhos. Por exemplo, em Itália, a média de idade dos que faleceram devido ao covid-19 é de 79.5 anos. É particularidade desta doença. Não tinha de ser assim; um bom exemplo é a gripe A que chegou em 2009/2010 e que era mais letal para pessoas mais jovens.

Sempre existiram idosos. Por exemplo, Sócrates foi assassinado com 70 anos, Platão faleceu com 76 anos, e Pitágoras com 75 anos. O nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, viveu uma vida extramente agitada, mas faleceu com, pelo menos 75 anos, talvez 79 anos (sabemos quando morreu, mas há dúvidas sobre a sua data de nascimento). O que é novo, é a enorme percentagem e, ainda mais importante, a enorme quantidade de idosos no mundo. É um verdadeiro sucesso da humanidade, ser capaz de prolongar a sobrevivência de tantos. As vacinas, os antibióticos, e o mero hábito de lavar as mãos ou de tomar banho frequentemente terão contribuído de forma decisiva para esse sucesso. É um verdadeiro sucesso, mas também uma novidade em termos da História da vida e do nosso planeta.

Algo também novo é a quantidade total de pessoas no mundo, cerca de 7.6 mil milhões. Note-se que, quando a agricultura foi inventada, eramos apenas 4 milhões em todo o mundo; no tempo da Grécia Antiga, éramos 100 milhões e, no tempo de D. Afonso Henriques, cerca de 300 milhões.

Sendo um animal profundamente social, o Homem é facilmente explorado pelos agentes infeciosos, nomeadamente microrganismos. Com densidades populacionais tão elevadas, estamos a facilitar a vida aos microrganismos. Adicionalmente, a sociedade humana convive numa estrutura social do tipo “small world” (pequeno mundo), um facto descoberto pelo psicólogo americano Stanley Milgram. O que Milgram mostrou foi que todas as pessoas do mundo estão socialmente “próximas”. Isto é possível porque viajamos por razões de lazer ou de trabalho. Não temos noção disso, mas estamos todos muito próximos de qualquer cidadão chinês de, por exemplo, Wuhan na China. Todos nós pertencemos a grupos de amigos em que os nossos amigos são também amigos entre si, mas depois um deles por vezes viaja. Vejamos, por exemplo, o caso de um dos primeiros infetados por covid-19 em Portugal: um português que tinha ido trabalhar à feira de calçado de Milão. Aparentemente foi lá que contraiu a doença, eventualmente de outro empresário que talvez estivesse estado recentemente na China. Assim, sem o saber, toda a comunidade onde reside este caso de covid-19 (em Portugal) está a um passo da China e, provavelmente, de todo mundo pela simples razão de que muitos empresários aí residem. O vírus covid-19 apenas se aproveita disso.

Podemos agora perguntar-nos: tivemos azar por, supostamente, aquele morcego ter mordido um pangolim que, por sua vez, viu as suas escamas à venda num mercado chinês? Se tivesse sido só uma questão de sorte (ou azar), poderíamos estar descansados: isto não voltaria a acontecer. O problema é que fenómenos destes devem ocorrer constantemente com muitos outros vírus que nem chegam a ser batizados. Estes vírus caem no esquecimento. “É uma virose, isso já lhe passa!”, diz o nosso médico e com toda a razão. A diferença agora com o covid-19 é que tinha propriedades de transmissibilidade e de mortalidade elevadas. O VIH também não foi só uma virose.

Frequentemente supõem-se que uma nova doença começa por ser muito patogénica e depois, ao longo de décadas ou séculos, vai baixando o seu grau de patogenicidade. Esta noção não é correta. De acordo com esta ideia, quando um microrganismo passa, pela primeira vez, de uma outra espécie para um ser humano (como parece ter acontecido com o covid-19 que terá passado de um morcego para nós na China) inicialmente é muito patogénico porque ainda não está adaptado à nossa espécie. Vários estudos têm demonstrado que isto não é verdade. A patogenicidade inicial pode ter qualquer grau, e poderá depois subir ou descer, dependendo de vários fatores. A espectativa de que a patogenicidade irá sempre começar por ser alta e depois baixar baseia-se na ideia, esta sim, quase correta, de que, de uma forma geral, os microrganismos não têm vantagem em matar uma pessoa porque isso impede-os de contagiar outra pessoa. Erroneamente, este argumento assume que um vírus poderia ajustar a sua patogenicidade em função do estrago que irá causar. Este género de planeamento não acontece - a Evolução Darwiniana é cega. Apenas conta o número de descendentes que o vírus consegue deixar, mesmo que isso seja o seu fim – aquilo a que denominamos de extinção darwiniana.

Vejamos o caso da bactéria Yersinia pestis, causadora da Peste Negra. Investigadores têm analisado o genoma destas bactérias retiradas dos tecidos do interior dos dentes de cadáveres de humanos europeus e asiáticos dos últimos 5000 anos. Estes estudos permitiram perceber que esta bactéria foi endémica na Eurásia pelo menos durante 3000 anos, mas que acabou por evoluir no sentido de se tornar mais patogénica. No século XIV, é bem sabido, provocou a morte de milhões de pessoas.

Como é que ocorre a evolução de um vírus que infeta humano? Depende de vários fatores, em particular da probabilidade de contágio entre as pessoas. Consequentemente, depende da probabilidade de uma única pessoa ser contagiada por mais do que uma forma do vírus. A competição entre estas múltiplas formas do vírus no interior das nossas células acabará por selecionar os vírus mais rápidos e mais eficientes a explorar as nossas células, e, portanto, os mutantes mais patogénicos. A espécie humana, sendo tão social, poderá proporcionar a possibilidade de várias formas do vírus infetar várias vezes uma mesma pessoa. Por exemplo, uma pessoa poderá ser infetada por uma das formas vindas de Espanha através de um amigo que lá esteve, e por uma forma vinda da China, através de um colega que lá foi em trabalho. Estas duas formas têm pequenas diferenças, já sabemos, mas ao infetarem a mesma pessoa, incentiva-se um aumento da patogenicidade do vírus. Porquê? Porque a versão do vírus que for mais rápida a replicar-se no interior das nossas células, e, de uma forma geral, a explorar o nosso corpo, será precisamente o que deixará mais descendentes. É a Seleção Natural de Darwin a atuar, simplesmente.

Na verdade, as chamadas “vacinas vivas” são feitas precisamente forçando que o vírus evolua em, por exemplo, em coelhos (ou em ovos ou em culturas de tecidos). Após algum tempo, o vírus muda um pouco, ao tornar-se mais virulento para o coelho, estará menos adaptado aos humanos. Agora neste estado, ao ser injetado numa pessoa, o vírus já será muito menos patogénico, dando tempo para que o sistema imunitário consiga responder a tempo. As vacinas do sarampo, rubéola e muitas outras baseiam-se neste processo.

O vírus covid-19 é novo e suspeita-se que terá vindo de um morcego. Podemos então perguntar: qual a origem de outras doenças conhecidas, por exemplo, sarampo, varicela, varíola, gripes? Sabemos que quase todas resultam do manuseamento de animais, em particular da grande revolução que ocorreu há dez mil anos quando decidimos domesticar animais. O gado bovino, caprino, ovino, suíno, e as vulgares aves de capoeira que nos alimentam, mas também que nos transmitiram os seus vírus. Só o vírus causador da varíola parece ser exclusivamente humano, razão pela qual foi possível erradicá-lo do planeta (se também circulasse, por exemplo, em minhocas ou lulas ou águias, seria praticamente impossível erradicá-lo, pois teríamos de eliminar estes animais).

Ao longo de milhares de anos, os humanos da Europa e Ásia gradualmente se adaptaram às doenças enunciadas em cima: os mais suscetíveis não deixaram descendentes, um processo que levou milhares de anos. Quando Colombo e muitos outros europeus chegaram à América, levaram consigo, pelo menos 14 doenças altamente letais para os ameríndios que não tinham domesticado os animais referidos em cima. Em certas zonas terão morrido mais de 90% dos locais, um processo que facilitou fortemente a colonização europeia.

No famoso livro do escritor inglês H. G. Wells, “A Guerra dos Mundos” (The War of the Worlds) publicado em 1898, o nosso planeta assiste a uma invasão por marcianos. Estes extraterrestres assolam grande parte da humanidade, mas acabam por morrer perante uma infeção viral terrestre. Ao mudarmos as nossas condições de vida de uma forma tão rápida, por exemplo aumentando a capacidade de viajar de formas mais rápidas e mais baratas, ou aumentando tão rapidamente a densidade populacional humana, provoca um efeito idêntico a uma invasão - somos nós os extraterrestres. Estamos a ser vítimas do nosso próprio sucesso. Por exemplo, há 78 anos começámos a produzir antibióticos em larga escala, mas, hoje em dia, só em Portugal, morrem mais de 1000 pessoas devido à resistência a antibióticos. Esta resistência não existia em 1942, é produto exclusivamente da atividade humana.

Se a Ciência e a Tecnologia permitiram tanto benefícios para a humanidade (vidas mais longas, engrossando as faixas etárias mais avançadas, e viagens mais baratas e rápidas), acredito que também a Ciência e Tecnologia encontrarão solução para a covid-19 e para novas doenças que virão. Não, esta não será a última pandemia.

* Professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e investigador no cE3c - Centre for Ecology, Evolution and Environmental Changes