Opinião

O que Significam a Liberdade de Expressão e a Responsabilidade em Democracia?

A liberdade de expressão como um princípio constitucional inerente à democracia, o badalado caso de Mário Machado na TVI, a discussão sobre o êxito da extrema-direita populista, o discurso de ódio que está muitas vezes associado a esse populismo, têm provocado desorientação. Há mesmo razões para tal, para medo? A democracia tem fundamentos constitucionais e não está totalmente indefesa.

A resposta mais forte é a criminalização de comportamentos que possam ameaçar esses fundamentos, tal como o discurso de ódio. Em Portugal, a difamação ou ofensa em razão da raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica constitui crime; fundar ou constituir organização ou levar a cabo atividades de propaganda que incitem ou encorajem a discriminação, ódio ou a violência em razão dos motivos anteriores, constitui crime; participar na organização ou atividades referidas ou prestar-lhes assistência é crime. Em qualquer dos casos, é um crime punido com pena de prisão de um a oito anos. Outros países Europeus, a África do Sul, o Canadá, a Nova Zelândia, têm legislações semelhantes.

A criminalização destes comportamentos é um limite à liberdade de expressão justificado com os direitos constitucionais à liberdade e à segurança, ao desenvolvimento da personalidade, à identidade pessoal, à cidadania, ao bom nome e reputação, e à imagem.

No seu livro de 2012, The Harm in Hate Speech, Jeremy Waldron demonstra como o discurso do ódio atenta contra a segurança no espaço que é de todos e que todos temos direito a habitar, contra a inclusão, a dignidade do indivíduo. Ele impede o desenvolvimento livre da personalidade, o direito à identidade em termos igualitários, e pode (e muitas vezes pretende) ainda motivar a violência contra indivíduos pela sua pertença a um grupo minoritário ou vulnerável.

O discurso de ódio e a violência motivada pelo ódio devem ser criminalizados porque o Estado democrático não é ideologicamente neutro, deve assegurar as condições para que todos – incluindo minorias ou maiorias vulneráveis - possam viver em liberdade. As palavras também são atos, e a proibição do incitamento ao ódio e do discurso de ódio assegura a liberdade em democracia, não a limita.

Nos “cinco minutos de Filosofia do Direito”, publicados pela primeira vez como circular dirigida aos estudantes de Heidelberg, após a guerra, em 1945, Radbruch dá-nos um importante testemunho histórico de como o Direito acrítico, meramente ligado à força da lei, pode ter resultados trágicos. Revendo a sua Filosofia do Direito neutra, anterior à guerra, Radbruch clama agora contra a neutralidade do Direito. No quinto minuto, defende Radbruch que “...há ... princípios fundamentais de direito que são mais fortes do que todo e qualquer preceito jurídico positivo, ... o esforço de séculos conseguiu extrair deles um núcleo seguro e fixo...(reunido) nas ...declarações dos direitos do homem e do cidadão”.

Voltemos à liberdade de expressão.Esteve bem a ERC ao ilibar a TVI no caso da entrevista a Mário Machado. Trazê-lo à televisão não constitui crime, nem ele comete um crime se as declarações não se inserirem num discurso de ódio. Mas a criminalização, neste campo como noutros, não é suficiente para proteger a democracia.

O exercício da liberdade de expressão pelos media não deve ser dissociado do direito de informação (eles estão constitucionalmente associados). Trazer à televisão alguém que cumpriu as suas penas de prisão por condenações passadas, não põe em causa a democracia só por si, mas responsabilidade em democracia implica perguntar a razão pela qual um indivíduo condenado por crimes violentos e relacionado com discursos de ódio é chamado a um canal, que mensagem se pretende transmitir às audiências, que serviço público se presta à democracia?

Guardar a democracia devia exigir responsabilidade social, compliance, um código de conduta ética para os partidos políticos e todos os media e respetivos canais, antenas ou periódicos. Essa responsabilidade postula uma valorização ativa dos parlamentos nacionais enquanto casa da democracia, e do discurso democrático, à semelhança do que se pede às empresas e ao Estado, para prevenir comportamentos ilícitos e socialmente irresponsáveis.

Códigos de conduta ética deveriam também assegurar que os partidos políticos e os media funcionem como “os guardas da democracia”, os gatekeepers, de que falam Levitsky e Ziblatt em How Democracies Die (2018). O dever de guardar a democracia tem significados diferentes para políticos e media. Estes têm de se orientar sempre pela liberdade de expressão e informação, não lhes compete vencer o discurso populista.

Mas assim como há décadas atrás se abriram as portas dos palácios reais, presidenciais e governamentais, partidos políticos e media devem exercer a democracia, de modo transparente e inclusivo, sair da zona de conforto, e também essa promoção deveria estar inscrita nos códigos de conduta ética.