Longevidade

A geração mil euros e o princípio da incerteza

Primeiro emprego. O mundo digital está a mudar a realidade, mas os jovens ganham pouco em Portugal e a taxa de desemprego é ainda elevada

Rafael Leitão, 21 anos, tem o sonho de ser capitão de um navio de cruzeiro. Atualmente trabalha como bartender num hotel na Avenida da Liberdade, em Lisboa

Quando viveu em Alfama, Rafael Leitão via da janela da cozinha a chaminé dos cruzeiros atracados no terminal de Santa Apolónia. Era habitual passear pela zona ribeirinha de Lisboa, impressionado com aqueles monstros do oceano, carregados de turistas prontos para uma visita rápida à capital portuguesa. Fazia desenhos detalhados dos navios, enquanto alimentava o sonho de um dia estar aos comandos. Durante a pandemia, o algoritmo acertou em cheio: no feed do Instagram surgiu um anúncio para um curso de turismo direcionado para cruzeiros. “Na altura tinha acabado o 12º ano e não estava certo de que queria fazer um curso superior. Preferia uma coisa mais prática e que me permitisse começar logo a trabalhar. Mas o meu sonho era ser capitão de um navio de cruzeiro”, conta o jovem de 21 anos, que trabalhou numa pizzaria, onde teve o primeiro contacto com o atendimento ao público, e durante dois anos aprendeu o ofício da cozinha. Entretanto, subiu uns furos na profissão: trabalha como bartender num hotel na Avenida da Liberdade, em Lisboa.

Rafael podia ser o retrato de uma geração. A mesma que dois autores italia­nos definiram como “Geração Mil Euros”, num livro publicado em 2007. Em Portugal, três em cada quatro jovens auferem cerca de mil euros líquidos por mês [ver números]. A entrada no mercado de trabalho ainda se afigura como uma das etapas mais complexas de quem tem entre 20 e 30 anos. E se falamos de uma das gerações mais qualificadas de sempre, também é certo que são das mais sacrificadas.

“O mercado não está à espera de jovens com elevada qualificação”, começa por dizer Maria João Valente Rosa, demógrafa e professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Considerando o primeiro emprego “decisivo” para a longevidade, a professora nota desigualdades no acesso ao trabalho de quem sai das faculdades ou dos cursos profissionais. “Não é igual para todos, uns podem escolher, outros têm de aceitar. É certo que as qualificações aumentam as possibilidades de alcançar um primeiro emprego, mas também criam expectativas que podem gerar maiores desilusões.”

Sempre que pensava em trabalhar, Beatriz Geraldes, de 26 anos, tinha uma prioridade: ter um emprego que lhe permitisse viajar. “Cresci a ver os meus tios fazerem viagens de trabalho ao estrangeiro, achava que queria fazer o mesmo”, recorda. Aos 22 anos, começou como freelancer de Marketing e Comunicação, área em que se licenciou, e vivia na casa dos pais, apesar de já ter alguma independência financeira. “Como trabalhadora independente, não tinha segurança para viver sozinha.” Uma viagem à Madeira durante o segundo confinamento mudou todas as perspetivas: “Havia uma enorme comunidade de nómadas digitais, pessoas que trabalhavam em todo o mundo. Bastava uma secretária e um computador.”

Através do Linkedin encontrou uma oferta de emprego para design, numa empresa americana, e fez um portefólio “à pressa”. “Candidatei-me um pouco à sorte, porque via os meus amigos e colegas de faculdade andarem meses e meses em entrevistas. O meu processo foi diferente e acabei por ficar nessa empresa americana, onde trabalho desde 2021.” Foi a decisão mais acertada, porque hoje divide a vida entre o Porto e Berlim, onde vive o namorado. Pelo meio viaja. “No ano passado estivemos três meses na América do Sul a trabalhar. Sinto que o trabalho que faço proporciona-me um equilíbrio perfeito, e o facto de trabalhar para uma empresa estrangeira permite-me ter um salário que não conseguiria em Portugal.”

Antiguidade ainda é um posto

Num tempo em que a esperança média de vida é cada vez mais alargada, a longevidade começa a programar-se e definir-se cedo. E se o trabalho se apresenta como um dos fatores essenciais para a sustentabilidade financeira, acesso à saúde, habitação e integração social, também é certo que Portugal é dos países da Europa onde os primeiros anos de atividade são dos mais desafiantes. Um dado revelador: a saída de casa dos pais, por exemplo, acontece aos 29,7 anos — quando a média da UE é aos 26,4.

Muitos optam pelo estrangeiro, como aconteceu com João Cardoso, que no último dia de curso de Engenharia Informática voou para Londres, onde fez duas entrevistas de emprego. Foi aceite em ambas as empresas. “Tive de escolher e por isso aceitei aquela que estava mais relacionada com a área da programação.” A namorada seguiu o mesmo caminho: com experiência em lojas de roupa, acabou contratada por uma empresa espanhola sediada no Reino Unido. O casal, que hoje vive em Portugal mas mantém emprego remoto, talvez não corresponda ao perfil de quem emigra empurrado pela falta de oportunidades.

Atualmente, mais de 850 mil jovens vivem fora de Portugal. São cerca de 30 por cento de todos os jovens portugueses entre os 19 e os 35 anos, um dado que tem forte impacto na demografia e no envelhecimento da população. “Nota-se a vários níveis e no próprio pulsar do país, quando as pessoas são forçadas a sair para encontrar respostas às suas expectativas”, afirma Maria João Valente Rosa. Por outro lado, quem fica deve estar ciente do “princípio da incerteza”. “As pessoas precisam de se capacitar para lidar com a marca do futuro, que é a incerteza. Fomos habituados a lidar com certezas, mas a incerteza é que faz parte do futuro.”

Talvez associada a esta ideia esteja uma outra que já não faz parte da realidade portuguesa: um emprego para a vida. É por isso que a demógrafa defende a formação constante e a adaptação a novas realidades. O que não invalida quebrar alguns modelos: “Estamos numa sociedade em que o mercado de trabalho é profundamente hierarquizado com carreiras verticais, o que complica quem chega. Voltamos à velha frase: ‘a antiguidade é um posto’, o que faz com que os jovens estejam sempre em desvantagem.”

Gonçalo Hall nasceu em Lisboa, viveu no Porto e no Algarve e foi um pio­neiro português no trabalho remoto. Criador da NomadX, presta consultoria à Startup Madeira e tem atraído à ilha novos talentos e pessoas empreendedoras. “Temos em média na Madeira mais de 20 mil nómadas por ano. Há também pessoas que voltaram à ilha por causa do tipo de sociedade e comunidade que criámos na Ponta do Sol”, conta este especialista, revelando as áreas mais atrativas para se trabalhar remotamente: “Tudo o que é tecnologia tem muito mais probabilidades, programação, inteligência artificial... Neste momento é possível encontrar trabalho em qualquer parte do mundo.”

(Des)emprego jovem

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é a percentagem de jovens em Portugal que ganham um salário até €1000. Ou seja, três em cada quatro jovens entre 18 e 35 anos. Destes, 39% não ultrapassam €800 líquidos


é a posição de Portugal, diz o gabinete de estatísticas europeu, na lista da UE com maior taxa de desemprego jovem: 20,3% em fevereiro. Atrás, apenas a Suécia (23,2%), a Grécia (25%) e a Espanha (28,2%)

Best of dos textos de longevidade no nosso site

Uma petição reuniu 9 mil assinaturas para acabar com a contenção física dos idosos. A população portuguesa acima dos 65 anos é das que se mantém mais economicamente ativa na UE. Saiba ainda como as crianças podem ajudar a terminar o preconceito contra os mais velhos.

● Petição Amarrar pessoas que se encontram em lares ou hospitais tornou-se “tão comum” que deixou de parecer algo errado, apesar de estarem em causa a dignidade e os direitos dos mais velhos. Carmen Garcia, enfermeira, é autora de uma petição que pretende acabar com esta prática. Conta já com mais de 9 mil assinaturas.

● Relatório Os idosos em Portugal mantêm-se economicamente ativos numa proporção superior à média da União Europeia, mas viajam menos e participam pouco em atividades físicas, recreativas ou culturais. Segundo o relatório do Instituto Nacional de Saúde Ricardo Jorge, Portugal apresenta um melhor posicionamento relativo ao emprego sénior: os dados mostram que 16% dos idosos mantêm-se economicamente ativos.

● Escolas Ao longo do ano letivo, a Comissão de Proteção ao Idoso levou a cabo uma campanha nas escolas para sensibilizar os mais novos sobre conceitos e problemáticas relacionados com o envelhecimento. Mais de 20 mil alunos de 122 escolas da região Norte do país já participaram na campanha de sensibilização dinamizada pela Comissão de Proteção ao Idoso (CPI), cujo objetivo é alertar para a violência contra os mais velhos e aproximar pequenos e graúdos, ao mesmo tempo que se desconstroem preconceitos associados à idade.

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