Vestidas com camisolas polares, protegidas com mantas, chinelos de lã e sem aquecedor, as irmãs Adília e Felicidade Mendes enfrentam como podem estes dias de inverno. Estão sentadas na sala de um 4º andar arrendado, num edifício construído há mais de 80 anos. Nesta divisão e no quarto, onde passam a maior parte do tempo, a dificuldade em aquecer a casa é visível nas infiltrações, que tantas vezes combatem com alguidares para amparar a chuva. Felicidade, a mais velha, de 86 anos, está com uma tosse cavernosa que lhe interrompe as frases enquanto conversa com o Expresso: “O que me vale são os rebuçadinhos do Dr. Bayard e o xarope de cenoura com açúcar mascavado.”
As ‘manas’, como são conhecidas no supermercado na rua onde moram no coração de Lisboa, são o retrato da dificuldade que os idosos enfrentam nos dias mais frios. Enquanto lá fora o vento sopra e levanta folhas em espiral, na manhã seguinte à tempestade provocada pela depressão “Irene” as duas irmãs recebem a bonança das assistentes sociais da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML). Trazem comida quente, prestam os habituais serviços de higiene e transmitem calor humano. Na verdade, nenhuma delas pede muito mais do que isso. “Não usamos aquecedor, nem pensar. Este prédio é todo em madeira, temos medo de provocar um incêndio”, adianta Adília, a mais nova, com pouco mais de um ano de diferença da irmã. “Temos mantas e reforçamos os cobertores na cama.”
O mau tempo tem sido notícia em todo o país e esta semana todos os distritos do continente estiveram sob aviso amarelo, com chuva, vento forte, trovoada e agitação marítima. Municípios de norte a sul ativaram planos de contingência para fazer frente à intempérie, apoiar os sem-abrigo e cuidar das populações mais vulneráveis. Medidas que ainda assim não evitam surtos de gripe, mais perigosa para os idosos, e a afluência às urgências. “Com o frio, aumenta o risco de infeções respiratórias graves, como a pneumonia, por exemplo, uma das principais causas de morte nesta época”, afirma Rui Tato Marinho, diretor clínico do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (Hospitais de Santa Maria e Pulido Valente). “De uma média de 350 pessoas que morrem por dia, nesta época o número sobe para 500. Nos serviços de urgência temos muitos idosos.”
É por isso — e não só — que o papel das instituições sociais de apoio domiciliário aos idosos se torna tão importante nestes tempos de inverno. “Tentamos providenciar aquecedores, mantas, cobertores para os nossos utentes mais frágeis e idosos”, diz Paula Abreu, diretora técnica da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) no concelho de Odivelas. Com 22 anos de experiência e 17 ao serviço da CVP, Paula nota que o aquecimento das habitações é um problema frequente nos meses mais frios, com muitos utentes sinalizados a partir de dezembro. “As casas não estão preparadas para o frio extremo, faltam condições de isolamento e manutenção de uma temperatura adequada.”
As palavras da técnica são comprovadas pelas estatísticas. A dificuldade em aquecer as casas é visível num estudo da Comissão Europeia que coloca Portugal como o quarto país da Europa com mais dificuldades em aquecer os domicílios (ver P&R). E se as ‘manas’ Felicidade e Adília preferem não usar dispositivos elétricos, a gás ou a óleo, não foi isso que aconteceu com uma mulher de 82 anos, em Odivelas, que recebeu da CVP um aquecedor. Problema: a casa não tinha potência elétrica e a luz ia abaixo sempre que a idosa o tentava ligar. “Contactámos a EDP e ficámos a saber que era possível contratar mais potência apenas por um certo período, quando faz mais frio”, conta Paula Abreu.
Para melhorar as condições na habitação dos idosos, várias entidades, públicas e privadas, têm programas para incrementar a eficácia energética durante o inverno — e também nos meses de maior calor. A Norte, a BragaHabit avançou com uma ideia para combater a pobreza energética em novembro de 2022, ano em que apoiaram 183 famílias, sobretudo pessoas idosas e famílias numerosas, num investimento de €450 mil. “Substituímos janelas e portas, colocámos isolamento térmico, sistemas de aquecimento de água, bombas de calor, caldeiras”, conta Carlos Videira, administrador executivo desta empresa municipal de habitação de Braga. Com uma adesão significativa, o projeto-piloto teve continuidade numa nova edição.
Mas voltemos à gripe e às infeções respiratórias, porque os números revelam um excesso de mortalidade compatível com a vaga de frio: nas últimas semanas de 2023 morreram 1048 cidadãos, afetando sobretudo pessoas entre os 65 e os 85 anos. Nestas faixas etárias houve um total de 790 vítimas. Nas urgências, diz Rui Tato Marinho, “um terço das pessoas tem mais de 75 anos e 15% mais de 85. Existe uma população muito grande de pessoas idosas e mais frágeis, com tempos de internamento mais prolongados, menos autónomos e que precisam de apoio social”.
Este tipo de apoio foi o que salvou um idoso do Porto, altamente vulnerável e que vivia numa habitação precária. “Não tinha sequer luz, a casa de banho não existia, o chão era em terra, passava muito frio e apresentava uma saúde muito débil”, recorda Raquel Mendes, assistente social numa instituição da cidade. “Éramos a única retaguarda, garantíamos comida e as mínimas condições de vida, e, por fim, conseguimos que fosse internado. Foi a história que mais me marcou desde que comecei a trabalhar nesta área, em 2008.” Os laços entre utentes e técnicos acabam por se tornar quase familiares.
Isso foi visível quando o Expresso visitou as ‘manas’, com o acompanhamento da coordenadora do apoio ao domicílio da SCML, Cristina Mendes: “Cobrimos as freguesias de Santo António, Estrela e Misericórdia, num total de 185 utentes. Por vezes, as nossas visitas são o melhor momento do dia destas pessoas.” No caso das ‘manas’, que vieram de Tomar para Lisboa ainda adolescentes, os laços com os assistentes sociais são importantes: num 4º andar sem elevador, com dificuldades de mobilidade, Felicidade e Adília só saem de casa para ir ao médico e precisam sempre de apoio.
P&R
Como é que os portugueses aquecem as suas casas?
Com muita dificuldade. Aparelhos móveis, elétricos ou a gás, são os mais frequentes nos domicílios portugueses. Dados de 2023 do Instituto Nacional de Estatística mostram, no entanto, que quase um terço das famílias não tem aquecimento em casa e apenas 14% recorrem a dispositivos como aquecimento central. As lareiras, salamandras e fogões são o tipo mais comum de equipamento para combater o frio.
Portugal é o país com maior pobreza energética da UE?
De acordo com o estudo “Pobreza Energética Doméstica”, realizado em 2019 pela Comissão Europeia, Portugal é o quarto país com maior dificuldade em manter as casas quentes. A falta de recursos financeiros é a principal explicação para esta posição, apenas superada pela Bulgária, Grécia e Chipre, que ocupam os três primeiros lugares da lista de países mais vulneráveis. Suécia, Finlândia e Dinamarca são os que têm maior eficiência energética.
Que soluções existem para fazer face a este problema?
Portugal tem uma Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2022-2050. O objetivo é melhorar as condições de aquecimento nas casas, reduzir os custos de energia às famílias mais vulneráveis e resolver problemas como infiltrações, humidade ou elementos apodrecidos.
Best of dos textos de longevidade no site
O Plano de Ação para o Envelhecimento Ativo e Saudável foi finalmente publicado em “Diário da República”. Meta: atenuar o impacto das alterações demográficas em áreas como saúde, autonomia e trabalho
Medidas O documento, publicado a 12 de janeiro, contempla 83 medidas e 135 atividades com o foco na promoção da saúde e bem-estar, autonomia, rendimentos, aprendizagem e requalificação de competências, participação no mercado de trabalho e vida ativa na sociedade.
Livro verde O plano, que também apresenta soluções de habitação colaborativa e criação de uma rede de cuidadores, está em linha com o “Livro Verde do Envelhecimento”, da Comissão Europeia.
Orçamento Trata-se do maior investimento em longevidade: €1300 milhões de verbas comunitárias. As medidas são direcionadas para a população idosa, mas existe também uma forte aposta na prevenção.
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Longevidade
É o ano dois do projeto que o Expresso lançou em 2022, com o apoio da Fidelidade e da Novartis. Durante este ano olhamos para os desafios da longevidade que se colocam às pessoas, às comunidades, às empresas e ao Estado. Agora que vamos viver mais anos, a meta é chegarmos novos a velhos.
Textos originalmente publicados no Expresso de 19 de janeiro de 2024