Longevidade

Guardiões do tempo: a longa vida dos centenários

Demografia: nas últimas duas décadas, o número de pessoas com mais de 100 anos aumentou 78%. Existem, atualmente, quase 3 mil cidadãos residentes em Portugal que ultrapassam essa barreira. Quem são? Como vivem? Têm saúde?

Guilhermina Paiva tem 101 anos e vai diariamente a pé até ao centro de dia. Chega mais depressa do que se fosse na carrinha da instituição
Nuno Fox

São 10h45 quando os técnicos do Centro Intergeracional da Ferreira Borges (CIFB) tocam à campainha da utente mais velha da instituição. Guilhermina da Costa Paiva tem 101 anos, vive sozinha com um gato — o “Xico” — e caminha todas as manhãs pela calçada portuguesa até ao local onde passa seis horas por dia. Nascida em 1921, atravessou guerras e pandemias, e apesar dos seus 40 quilos agarra-se à vida como as árvores centenárias que existem no jardim mais próximo da sua casa, em Lisboa.

Estamos, curiosamente, no dia dos avós — 26 de julho. Guilhermina, que nunca casou nem teve filhos, pode, ainda assim, dizer que tem muitos netos, graças ao projeto da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), que junta muitos miúdos do bairro com os mais velhos. “Perguntam sempre: ‘onde está a avó’”, conta, sentada no primeiro andar do centro, onde decorre uma aula de ioga para idosos. A ‘avó’ representa de forma fiel uma estatística recente: só nos últimos 20 anos, a percentagem de pessoas com 100 anos e acima mais do que duplicou e cresceu 77%.

São quase 3 mil as pessoas residentes em Portugal com esta idade. Nem todos terão a saúde e vontade de viver de Guilhermina, que regressa do centro ao fim da tarde para jantar, ver uma maratona de telenovelas e repousar finalmente os seus 101 anos na cama. Uma rotina simples que lhe preenche dias carregados de boa disposição. Saúde não lhe falta: “Tomo três comprimidos por dia, para o coração e circulação.”

A caminhada diária e o contacto com outras pessoas contribuem para a lucidez e força física desta mulher, que quando nasceu tinha uma esperança de vida muito inferior ao tempo que já conquistou. Em 1921 podia viver pouco mais de 38 anos, a acreditar na média de então, ou seja, já conta com 63 de avanço em relação às estatísticas. Vários fatores ajudam a explicar o seu e outros fenómenos de longevidade, tais como a melhoria das condições de vida ou os progressos na saúde e nos cuidados médicos, decisivos para viver mais e com melhor saúde.

O sociólogo António Barreto, fundador do site Pordata (que explica em números, gráficos e estatísticas a evolução demográfica em Portugal), acrescenta outras justificações: “vale a pena assinalar fatores concretos, e um dos mais importantes é, sem dúvida, a água potável e os sistemas de canalização nas casas portuguesas. Nesse aspeto houve uma alteração radical comparando com os anos 50 e 60”, explica, a que se juntam as “vacinas e os antibióticos”. “Há outro que facilmente se esquece, os serviços de emergência. Uma das causas de morte frequente entre os idosos são as quedas e a dificuldade que existia no socorro das pessoas. Entre o momento do acidente e a chegada da assistência podiam passar-se horas ou até dias. Hoje o socorro é muito mais rápido e eficaz.”

Diretora aos 100

Um braço partido. Ao fazer a retrospetiva de uma longa vida de 100 anos, o pior episódio de saúde que Albertina Madeira recorda foi uma queda ao subir os degraus de casa, que resultou num osso partido. “Também tive sarampo e um pequeno problema na vesícula”, conta esta centenária, desde a sua casa em Alte, freguesia do município de Loulé, com apenas 1746 habitantes. Nascida a 2 de janeiro de 1923, “numa segunda-feira”, Albertina é a moradora mais antiga desta região, afastada do litoral turístico do Algarve, entrincheirada na Serra do Caldeirão.

Albertina tinha pouco mais de 20 anos quando dali partiram vários soldados para combater na Guerra Colonial e foi através da criação de um jornal que ela e a irmã — professora primária, já falecida — começaram a levar as notícias da região aos combatentes. Intitulado “Ecos da Serra”, integrava cerca de 20 colaboradores e era distribuído nos locais de conflito. “Enviávamos por correio para Angola, Moçambique, Guiné, até para a Índia”, assinala a ainda diretora do periódico cuja edição mais recente foi publicada na semana passada.

Albertina leva uma rotina simples mas ativa: “Deito-me à meia-noite, acordo às 7h, faço a lida da casa e varro os bichos-da-conta que tanto me arreliam.” A viver com uma afilhada, durante a tarde cuida de um pequeno pomar no quintal da casa e conta “as laranjas que caíram ao chão, os limões, os figos”. Depois senta-se no seu canto da sala para tricotar, ler, rezar e escrever bilhetes com tarefas, para não se esquecer. Também faz aguardente de licor de medronho, apesar de nunca ter bebido nem fumado. Talvez esteja aqui um dos segredos da sua longevidade: “Passo anos sem ir ao médico.”

Três gerações

Voltemos ao passeio matinal em que acompanhamos Guilhermina, enquanto ouvimos a diretora do CIFB. “Temos utentes entre os 80 e os 95. Já tivemos alguns centenários que morreram durante a pandemia”, diz Isabel Araújo, cuja instituição promove múltiplas atividades para os idosos como ioga, ginástica ou pintura. “Se me sinto doente, mal chego aqui fico logo boa”, interrompe Guilhermina.

Se a vida não lhe proporcionou casar e ter filhos, o mesmo não pode dizer Ana Rebello Andrade. A poucos dias de completar 101 anos, tem 10 filhos, 26 netos e 41 bisnetos. Numa casa sem elevador, já pouco sai à rua, mas nunca está sozinha. As três gerações são visita habitual da matriarca que sempre viveu para a família. “Trabalhei em casa, muita gente para alimentar”, conta, não escondendo a felicidade de ter as três gerações vivas e com saúde. “Somos uma família muito unida e tenho memórias felizes. Sou muito ligada à família. O meu filho mais novo tem 60 anos e o mais velho 75.” Se o marido fosse vivo teria 121 anos. E o futuro? “Não posso fazer planos. É esperar que nosso Senhor me leve para o Cemitério dos Prazeres.”

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A solidão, o emprego e o marketing

Isolamento O projeto Porta 55+, desenvolvido em Vila do Conde, promove o envelhecimento ativo e o combate à solidão de quem tem mais de 65 anos com recurso ao apoio de voluntários com mais de 55 anos. A lógica é a de um trabalho entre pares, em que as duas gerações ajudam-se mutuamente.

Trabalho Encontrar emprego depois dos 50 é uma tarefa difícil. Por isso há um projeto que pretende inverter esta tendência, aproveitando a formação superior destes desempregados e ajudando-os a voltar ao mercado de trabalho. Entre os 45 e 64 anos, 80% das pessoas deixam de procurar emprego.

Marcas O envelhecimento da população é cada vez mais uma realidade no mundo ocidental. É por isso que as marcas começam a apostar no segmento acima dos 50 anos: só na Europa, este mercado reúne 220 milhões de pessoas, que procuram produtos ligados à saúde e bem-estar.

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P&R

Quais são os países com mais centenários?

Além de ser o país onde as pessoas vivem mais anos, o Japão é também a nação com maior número de centenários. Em média, 48 em cada 100 habitantes ultrapassam os 100 anos. Considerada uma das zonas azuis — conceito que define os lugares do mundo com pessoas mais longevas e onde se vive mais do que 100 anos —, existem quatro regiões onde as populações chegam à idade centenária: Sardenha (Itália), Loma Lima (EUA), Península de Nicoya (Costa Rica) e Icária (Grécia)

Em Portugal qual é o rácio de pessoas com mais de 65 anos por número de jovens?

Segundo o índice de envelhecimento, há 184 pessoas com mais de 65 anos por cada 100 jovens. Este indicador é, segundo António Barreto, o que melhor define a demografia portuguesa. “É verdade que há mais idosos, mas o problema é que há menos jovens com menos de 15 anos. Isto é a base do envelhecimento”, aponta o sociólogo.

Que lugar ocupa Portugal no ranking da UE de pessoas com mais de 65 anos?

Segundo lugar. Foi no virar do milénio que a população sénior ultrapassou o número de crianças e jovens.

Longevidade

É o ano dois do projeto que o Expresso lançou em 2022, com o apoio da Fidelidade e da Novartis. Durante o ano vamos olhar para os desafios da longevidade que se colocam às pessoas, às comunidades, às empresas e ao Estado. Agora que vamos viver mais anos, a meta é chegarmos novos a velhos.

Textos originalmente publicados no Expresso de 28 de julho de 2023