Guerra na Ucrânia

“O Papa não pode dizer quem é o verdadeiro agressor, mas como podemos erguer a bandeira branca se os russos nos continuam a matar?”

O bispo da Ucrânia Stepan Sus, de 42 anos, esteve recentemente em Portugal a convite da fundação Ajuda à Igreja que Sofre, e conversou com o Expresso sobre a guerra, sobre as polémicas declarações do Papa Francisco acerca da Ucrânia, e sobre a necessidade de a Rússia se converter

Stepan Sus, bispo da Ucrânia, durante um discurso em agosto de 2023, em Lviv
Global Images Ukraine

Filipe D'Avillez

O bispo Stepan Sus é responsável pelo Departamento da Pastoral dos Migrantes da Igreja Greco-Católica da Ucrânia (IGCU), a maior das igrejas orientais em comunhão com Roma. Como tal passa cerca de duas semanas por mês a viajar pelos mais de 18 países sob a sua jurisdição, a visitar ucranianos na diáspora. Antes de ser nomeado bispo, ajudou a criar a capelania militar da IGCU, pelo que está bem familiarizado com a realidade militar. Desde que a guerra começou, diz que já perdeu muitos amigos, e presidiu a cerca de 600 funerais nos últimos dois anos, chegando a fazer 15 enterros num só dia.

O Papa Francisco causou alguma polémica recentemente quando disse que a Ucrânia devia ter a “coragem de erguer a bandeira branca”. O Vaticano já disse que ele não estava a pedir uma rendição, mas negociações. Ficou convencido?
Nós compreendemos claramente que o Santo Padre está do lado de quem está a sofrer. Muitas vezes, nas suas homilias ou declarações no Vaticano, ele sublinha que está a rezar, a pensar, e a guardar no coração, a nação martirizada da Ucrânia, que está a sofrer esta guerra estúpida e desnecessária. Essas mensagens mostram-nos claramente que o Santo Padre está do lado dos ucranianos.

Por razões diplomáticas e políticas, ele não pode dizer oficialmente quem é o verdadeiro agressor nesta guerra, mas para nós é difícil compreender como podemos erguer a bandeira branca, ou como podemos deixar de nos defender, porque estamos a defender-nos de algo. Como podemos falar de paz com a Rússia enquanto eles nos continuam a matar? Porque é que o governo ucraniano abandonou as conversações com a Rússia na Turquia em 2022? Porque nesse mesmo dia, enquanto os russos falavam connosco sobre paz, e sobre pôr fim à guerra, estavam a massacrar pessoas em Bucha e em Irpin. Violaram as nossas mulheres, mataram crianças, e nós compreendemos que se um país quer falar de paz, em primeiro lugar tem de pôr fim à agressão, mostrando claramente que estão prontos para dialogar sobre isto, sobre coisas concretas.

Depois, quando se fala de diálogo, também é necessário ter verdadeiras condições. Um dos lados tem de respeitar o outro. Mas quando vemos as declarações da Federação Russa ao longo dos últimos anos, ou meses, eles dizem que não querem falar com a Ucrânia, porque somos fascistas. Só querem falar com a União Europeia, com a NATO, com os EUA. Ou seja, querem falar sobre a paz na Ucrânia, sem a Ucrânia, querem falar da paz na Ucrânia, com outras nações, enquanto continuam a matar ucranianos, e querem que acreditemos que estão mesmo interessados em falar sobre a paz. Isto, para nós, não é aceitável.

Mas a Ucrânia está a pagar um duro preço no campo de batalha…
Estou convencido de que o número de pessoas que têm sido mortas durante esta guerra é inferior ao que seria se eles tivessem ocupado o país inteiro. Vimos crimes em Mariupol, em Bucha, Irpin. A Rússia acredita que com tempo suficiente, o mundo cansa-se e para de apoiar a Ucrânia, e que pressionarão a Ucrânia a negociar. Mas ninguém pensa nas consequências, no que nos fariam. Se nos fizeram estas cosias no território ocupado enquanto nos defendíamos, imaginem o que nos fariam se os deixássemos entrar e aceitássemos a sua ideia de irmandade? Não é realístico. Não é possível. Estamos todos a rezar pela paz na Ucrânia, queremos essa paz, porque estamos a sofrer. Mas somos realistas e compreendemos que não é possível enquanto alguns falam de paz, mas continuam a matar o nosso povo.

O líder da IGCU, o Arcebispo-mor Shevchuk, tem falado insistentemente da necessidade de abordar os efeitos do trauma entre a população. Sentes que a Ucrânia, e a Igreja em particular, estão preparadas?
Como Igreja, estamos a tentar olhar em frente e pensar sobre os desafios que vamos enfrentar no final da guerra, quando os soldados voltarem para casa. Já tivemos de lidar com muitos desafios, incluindo trauma psicológico e físico, muitas situações de conflito familiar, e por isso iniciámos um programa para sarar as feridas da guerra, para treinar os nossos padres, as nossas freiras e os nossos monges, bem como todos os voluntários, para trabalhar com veteranos de guerra e as suas famílias.

Agora percebemos que isto não é só sobre os soldados serem aceites pelos seus parentes quando regressam a casa, mas também importa preparar os militares para esta mudança de realidade, para voltar a um ambiente em que as pessoas vivem de forma diferente. Isso pode levar a incompreensões, desapontamentos, e a pessoa pensa que esteve lá na guerra, a sacrificar-se, mas que nada mudou no resto da sociedade, e que ninguém a compreende.

Queremos treinar as nossas pessoas para estarem bem preparadas. Não significa serem todos psicólogos, mas têm de saber direcionar as pessoas no sentido certo, porque muitos dos nossos militares, se sentem dificuldades, vão primeiro à Igreja. Eles confiam na Igreja, e para nós, enquanto Igreja, é importante poder ajudá-los com os problemas que têm.

Trabalhou na capelania militar durante muitos anos. Qual é a importância de um capelão durante uma guerra?
Costumamos dizer que não há ateus na linha da frente. Os soldados que enfrentam situações de batalha e de guerra confrontam-se com muitas questões existenciais. Em primeiro lugar, estão a pensar no sentido das suas vidas. Para que estou a viver, enquanto militar? Que faço aqui? Como posso estar aqui, a sacrificar a minha vida, e ao mesmo tempo cuidar da minha família? Há sempre uma relação entre o dever e a família. Estão sempre dispostos a depor a vida pelos outros, pela nação.

A capelania militar existe para ajudar os nossos soldados a encontrar as respostas certas para as perguntas que têm durante a guerra. Quando se é ferido, amputado, é preciso ter alguém com quem contar. Mas os capelães são também mediadores entre o militar e a sua família. O capelão é um pai, um irmão e um bom amigo para todos os homens e mulheres das forças armadas.

Esperamos que um dia esta guerra termine, e que se obtenha justiça. Acredita que venha a ver a reconciliação entre a Ucrânia e a Rússia?
Esperamos que sim, e que a Rússia compreenda os seus erros, que cometeu ao iniciar esta guerra desnecessária contra os ucranianos. Durante anos os russos disseram-nos que somos irmãos e amigos, mas agora compreendemos que mesmo que alguém nos chame irmão, isso não significa que não nos façam coisas más.

Estamos à espera de outra Rússia, uma Rússia que seja parte da Europa e que compreenda que pode fazer muita coisa boa no mundo, a começar pelo respeito pela dignidade da vida humana e o respeito pelo seu próprio povo – porque nós compreendemos que muitas pessoas da Rússia também morreram nesta guerra – e que a Rússia reavalie a sua atitude para com outros países.

Hoje, com a sua propaganda, os russos querem reescrever a história do mundo inteiro. Se não aceitam algum país, dizem que a sua existência é um erro da história. Foi o que disseram da Ucrânia, há umas semanas disseram a mesma coisa sobre a Bélgica, a Polónia e os países bálticos. Estão a fazer revisionismo histórico e o grande perigo para nós é que estão a usar valores cristãos para tentar justificar esses erros, como no princípio da guerra, quando disseram que queriam salvar o mundo, e que por isso tinham de começar a guerra, para salvar o mundo dos seus pecados.

Este espírito missionário, ou messiânico, é perigoso, porque conseguimos ver pela história que todos os tiranos começaram o seu caminho declarando a necessidade de converter o mundo, de salvar o mundo, matando civis.

Durante a sua visita a Portugal disse: “A Rússia precisa de se converter. Provavelmente estamos a viver tempos necessários para pôr fim a este mal”. Há aqui uma ligação à promessa de Fátima de que a Rússia se ia converter. Pode explicar melhor?
Pensamos muitas vezes no sentido desta mensagem de Nossa Senhora de Fátima. Porque é que a Rússia tem de se converter? Penso que estamos num combate com o mal, e compreendemos que o mal tem uma face humana, porque esta guerra foi iniciada por uma pessoa, uma pessoa que começou a espalhar este veneno, e temos de travar essa pessoa. Não só os ucranianos, mas outros países europeus, e todo o mundo, tem de travar este mal e ajudar a Rússia a mudar. A conversão implica esta mudança profunda.

Quando falamos de conversão de alguém, queremos dizer que essa pessoa mudou radicalmente de visão, de contexto de vida, e talvez seja aí que entra esta mensagem da Virgem Maria em Fátima, porque não se tratou apenas de uma declaração, mas sim de uma tarefa que ela nos confiou, de não ter medo de lutar contra o mal. É isso que estamos a fazer todos os dias na linha da frente.

A Ucrânia está atualmente a discutir uma lei que ilegalizará a Igreja Ortodoxa ucraniana que está ligada ao Patriarcado de Moscovo. Concorda com esta abordagem?
Tudo o que lhes pedimos é que digam claramente de que lado estão. Na Ucrânia ouvimos muitas declarações da Igreja de Moscovo de como a Ucrânia, a Rússia e a Bielorrússia são uma só nação, um povo, uma irmandade. Se eles dizem estas coisas, então que falem com Putin e com o Patriarca Cirilo e lhes peçam para acabar com esta guerra. Mas parece que não o querem fazer, estão sempre à espera do que vai acontecer amanhã, e não hoje, mas as pessoas estão a morrer hoje, os mísseis e os drones russos estão a matar civis, mulheres, crianças, a destruir cidades e aldeias, e nós só lhes pedimos que assumam uma posição. Creio que eles mostrarão de que lado estão com as suas ações e as suas palavras.

Mas uma lei que proíbe as suas atividades, ou expropria as suas igrejas, não dará apenas mais uma desculpa aos russos para lutar?
Claro que não aceitamos que se possa simplesmente banir a Igreja, porque é sempre perigoso o Estado banir uma Igreja. Acho que o mais importante é falar com eles e explicar-lhes que não podem continuar a celebrar só em russo, por exemplo. É estranho que no terceiro ano da guerra ainda temos uma Igreja que está a invocar os santos russos, como o Czar Nicolau, e a mostrá-los como exemplo de coragem, dizendo aos nossos soldados que deviam rezar a eles. É uma incompreensão da realidade, da história.

Nós, na Igreja Católica ucraniana, tentamos respeitar todas as confissões no país, mas ao mesmo tempo estamos com a nação ucraniana, e estamos a convidar todas as Igrejas que servem na Ucrânia a estar com os ucranianos. Não se pode dar cuidado pastoral aos fiéis na Ucrânia e ao mesmo tempo dizer que a Rússia e a Ucrânia são uma só nação. É difícil de aceitar.

Falando de Portugal, sente que a comunidade ucraniana cá está bem integrada?
A nossa diáspora aqui é histórica, começou há 25 anos, na década de 90. Vieram para trabalhar, e muitos decidiram ficar e tiveram filhos, que agora são portugueses. Para nós é importante ensinar o nosso povo a integrar-se na vida do país onde vive, mas ao mesmo tempo pedir-lhes que não se deixem assimilar, que preservem a sua própria cultura, tradições e vida de Igreja. Para nós é importante que se lembrem que são portugueses, mas de raízes ucranianas. Temos cerca de 25 comunidades em Portugal, 14 padres e uns quatro mil católicos que praticam todas as semanas.

E a Igreja portuguesa tem sido acolhedora?
Sim, a Igreja portuguesa tem apoiado estas comunidades. Usamos igrejas cedidas pela Igreja Católica local, e os nossos padres ajudam, servindo durante a semana nas paróquias de rito latino, como capelães nos hospitais, ou para outras comunidades.

A partir de fevereiro de 2022 começámos a ver em Portugal um grande número de carros de luxo, com matrículas ucranianas, conduzidos por homens jovens. Enquanto ucraniano, o que pensa do facto de alguns dos seus compatriotas estarem a viver confortavelmente no ocidente, enquanto outros estão a combater na frente?
Em primeiro lugar, compreendemos que há alguns ucranianos que não estão envolvidos na verdadeira vida ucraniana, e nas dificuldades que os ucranianos sentem na Ucrânia, que é uma guerra. Para eles, é como se a guerra não existisse. São ucranianos, mas a maioria encara a Ucrânia apenas como um território. Nunca estiveram profundamente envolvidos com a vida nacional, com os nossos desafios. Para eles, a Ucrânia é um local onde podem ganhar dinheiro, gerir os seus negócios. Claro que isto não se aplica a todos, alguns tentam ajudar a partir do local onde vivem, mas com outros, o seu comportamento, os seus carros de alta cilindrada, mostra-nos que não compreendem, que não estão a pensar na Ucrânia e nos ucranianos que estão a combater, que estão apenas a pensar em si mesmos, na sua segurança e nas suas necessidades.

A questão é: precisamos desta gente na linha da frente? As forças armadas dizem que é melhor não lhes pedir que venham combater, porque não se pode confiar em pessoas que fugiram da Ucrânia logo no início da guerra. Não são patriotas, não querem nada com o estilo de vida ucraniano, não se interessam com a vitória, são egoístas, preocupados com a sua própria segurança.

Talvez alguns tenham uma justificação. Talvez eles, ou os seus filhos, tenham problemas de saúde, e precisam de ir para algum lado para proteger os miúdos. Mas eu acho que em geral os ucranianos não deviam estar a conduzir carros e luxo no Ocidente, deviam estar na linha da frente.