Falta pouco, pouquíssimo, horas aliás, até os britânicos começarem a distribuir cruzinhas pelos seus candidatos preferidos. O último dia de campanha foi uma espécie de viagem intergalática aparentemente feita a bordo de veículos supersónicos que conduziram os líderes dos principais partidos aos cantinhos mais recônditos do reino. Jo Swinson, líder dos liberais-democratas, andou pelas orlas de Londres a tentar captar todas as simpatias possíveis para o seu projeto radicalmente europeísta, isto enquanto os seus próprios candidatos, noutros locais, abdicavam para o ‘labour’, aconselhando os eleitores ao voto útil para impedirem “a austeridade conservadora” e o “Brexit duro”. A luta, neste último dia, foi essa: evitar divisões, concentrar o voto do centro-esquerda só numa cor, seja ela o amarelo dos ‘lib-dems’ ou o vermelho do ‘labour’.
Em Glasgow, ainda o sol não tinha nascido e já Jeremy Corbyn pedia “a rejeição da política do desespero”. A questão da confiança no carácter dos líderes pode tornar-se um fator decisivo nalguns locais e Corbyn está a tentar capitalizar nas sondagens que dizem que, dos dois líderes, o trabalhista é considerado o mais honesto e o “mais próximo do cidadão comum”. “Esta quinta-feira vocês podem votar pelas políticas do desespero e da desonestidade deste governo ou podem votar ‘labour’ e empossar um governo determinado a procurar justiça e igualdade na nossa sociedade.” Boris Johnson passou parte do dia a fazer tartes numa padaria de Derby North, mesmo no centro do país: colocava-as no forno cruas e tirava as que já estavam cozidas. Metáfora perfeita para as câmaras: “O acordo do Brexit está pronto para o forno”.
Tudo isto dá boas fotos, bons soundbites e transmite energia às tropas no terreno mas a história mais importante destas eleições continua fora dos holofotes, como aqueles reclusos que nos filmes fogem das prisões e nunca chegam a ser localizados pela intensa luz do helicóptero lá no alto. O Brexit é muito mais complexo do que aquilo que Boris Johnson quer transmitir e a simplificação da mensagem está a resultar - é uma pena, num país já bastante dividido e que à divisão vai ter de acrescentar frustração quando se aperceber que o acordo que existe neste momento com Bruxelas, e que confirma a saída, não traz qualquer claridade sobre a forma como milhares de empresas britânicas que lidam todos os dias com clientes europeus (e vice-versa) vão ter de conduzir os seus negócios daí para a frente.
A incerteza que toda a gente quer dissipar, e com razão, vai ficar cada vez mais densa à medida que se comecem a discutir os detalhes da transição: que tarifas vão ser impostas e sobre que produtos? Há produtos isentos? Os medicamentos continuam a ser importados sem custos adicionais, por exemplo, por serem bens essenciais ou vão ficar mais caros para todos os britânicos? Os jovens europeus que pedem empréstimos para estudar no Reino Unido podem continuar a pedi-los? E quem já concluiu os seus cursos mas ainda não encontrou emprego vai poder procurar emprego no país? Quanto tempo terá para tal? E quanto às especificações dos produtos exportados para a UE? Que garantias vai a UE exigir aos agricultores britânicos, por exemplo, sobre a qualidade dos seus produtos antes de poderem voltar a ser exportados? Quanto vai custar preencher todos esses documentos? E os países europeus sem milhas de pesca vão abdicar das águas à volta do Reino Unido como os pescadores britânicos exigem? E que portas comerciais vão ser, em retorno, fechadas aos britânicos se esse acabar por ser o caso?
Ninguém tem estas respostas, por isso Boris Johnson também não as pode dar. Mas quando um divórcio tão complexo quanto este é simplificado a este ponto, as repercussões familiares são imprevisíveis. O editor de Internacional do Expresso, Pedro Cordeiro, esteve na Escócia, onde a conversa é toda à volta da independência - é natural que assim seja quando um dos argumentos mais fortes utilizados pelos unionistas durante a campanha de 2014 para a independência da Escócia, a pertença ao espaço europeu enquanto parte do Reino Unido, foi rasgada a sul da fronteira dois anos depois no referendo pelo Brexit.
Nigel Farage, um dos maiores defensores do Brexit, o homem que talvez seja, sozinho, o maior ideólogo de todo o movimento eurocético na política britânica, disse esta quarta-feira que os problemas ainda só estão no início e que a eleição dos conservadores só vai trazer mais atrasos ao país. O facto de Farage sonhar com uma saída totalmente crua, estilo “desliga a máquina da tomada e logo se vê”, também não apazigua ninguém mas dá-lhe a possibilidade de criticar todos os que desejem mais negociações, mais atrasos, mais bumerangues de e para Bruxelas. “Se a maioria for conservadora, que eu acho que será, estaremos de novo numa crise em maio porque vamos ter de pedir uma extensão de todo o processo porque o prazo para a pedirmos é a 1 de julho. Se é para termos um Brexit desmembrado, então, francamente, não vale a pena.”
Um exemplo desta falta de escrutínio aconteceu terça-feira quando Boris Johnson esteve no nordeste do país (por onde o Expresso também andou em reportagem e que é a zona onde os indecisos vão fazer maior diferença) e disse aos funcionários de uma fábrica de construção de retroescavadoras que as linhas de abastecimento ficariam exatamente iguais depois do Brexit - o que é verdade, até dezembro de 2020. Depois é uma incógnita. Confrontado com os medos dos funcionários, Johnson respondeu: “A coisa melhor do nosso acordo é que garante total equivalência em relação aos standards europeus para a indústria e tudo o resto”. Mas como a correspondente do “The Guardian” em Bruxelas explicou num longo texto em várias partes no Twitter, baseado no que as suas fontes lhe têm dito, “a única forma de Johnson ter um acordo comercial com a UE até ao fim do próximo ano é se ele pisar todas as suas linhas vermelhas e concordar com as regras de concorrência da UE, o que vai envolver, por exemplo, direitos a pescar nas águas britânicas”. A argumentação completa de Katya Adler está aqui.
Foto do dia
A frase
“Se desejam habitar os esgotos da política, por mim tudo bem mas eu não me vou juntar a vocês nesse lugar”, disse Jeremy Corbyn esta quarta-feira, ao denunciar os “níveis sem precedentes de assassinato de carácter” que alguns membros dos trabalhistas, segundo Corbyn, tiveram de enfrentar nestas eleições.
Uma história fora do Radar
As notícias falsas têm-se revelado um problema nestas eleições gerais, principalmente nos últimos dois dias. Apesar de termos visto outros episódios avulso desde o início da campanha (isto, claro, para não falar de tudo o que foi ‘planfletado’ durante a campanha do referendo), terça-feira foi um dia particularmente danoso para a credibilidade de políticos, jornalistas e das próprias redes sociais. Começou com a história do menino doente a dormir no chão de um hospital em Leeds que de repente se transformou numa mentira quando uma mulher, alegando-se amiga de uma enfermeira do hospital, recorreu ao Facebook para dizer que a foto tinha sido encenada pela própria mãe do menino. Mas não foi, o jornal que escreveu a história falou com o hospital, que confirmou o caso.
Essa refutação falsa tornou-se viral e a mulher em questão acabou por dizer que a sua conta tinha sido hackeada e que ela, de facto, não tinha escrito aquela acusação. James Mitchinson, editor do Yorkshire Post, foi o herói democrático do dia ao publicar, no Twitter, a resposta que enviou a uma leitora zangada com a “fotografia falsa do menino”. Nesse e-mail, explica todo o processo de escrita daquela notícia, as razões para a sua publicação, a definição de interesse público, as fontes consultadas, etc - está aqui. Ainda sobre esse mesmo hospital, à noite surgiu a história de que um assessor de Matt Hancock, ministro da Saúde enviado imediatamente para o Hospital de Leeds para pedir desculpa, tinha sido agredido por manifestantes de esquerda. Robert Peston, um dos mais respeitados jornalistas de política do país, defendeu-se, também no Twitter, de ter dado a notícia (falsa) dizendo que a história lhe tinha chegado “através de fontes muito próximas da liderança conservadora”.
Esta quarta-feira, a BBC publicou um artigo que confirma a gravidade da situação. A Coligação pela Reforma na Publicidade Política garante que pelo menos 31 vídeos e outros materiais promocionais de campanha, de todos os partidos, contêm informação “pouco digna, desonesta ou simplesmente mentirosa”. A pedido desta organização, constituída em grande parte por publicitários, a empresa de sondagens YouGov perguntou a 1.691 adultos se deveria existir um organismo de monitorização das mentiras veiculadas em campanha e 87% dos inquiridos disseram que sim. Dos 31 materiais analisados, 10 foram emitidos pelos conservadores, 11 pelos ‘lib-dems’, seis pelo Partido do Brexit e quatro pelos trabalhistas. O pecado toca a todos, mas os conservadores são os principais transgressores. A organização pela transparência do conteúdo de promoção política First Draft analisou apenas a publicidade colocada no Facebook nos primeiros quatro dias de dezembro e notou que 88% do material conservador analisado continha falsidades, meias verdades ou acusações aos adversários baseadas noutras informações não fidedignas.
A única falha do ‘Labour’ nesses dias veio de Jeremy Corbyn, quando acusou os ‘tories’ de quererem fazer um acordo com os Estados Unidos para vender o SNS, o que, segundo o líder dos trabalhistas, representaria o envio semanal de 500 milhões para as farmacêuticas norte-americanas. Já Hannah Arendt tinha escrito, em “As Origens do Totalitarismo”, que a função da propaganda não é fazer as pessoas crer em determinada coisa mas sim fazê-las duvidar dos factos provados. Os truques pouco honestos destas eleições estão compilados aqui pela CNN.
Naftalina eleitoral
Aos 87 anos, Dennis Skinner enfrenta o combate da sua vida. O trabalhista é o deputado há mais tempo no ativo no Reino Unido, eleito ininterruptamente desde 1970 pelo círculo de Bolsover, no centro de Inglaterra (Midlands). Se for reeleito esta quinta-feira, ganha o título “Pai da Câmara dos Comuns”. Acontece, porém, que as suas margens de vitória têm vindo a cair em anos recentes, de quase 40 mil votos no início do século para 5.288 nas últimas legislativas, em 2017. Os conservadores esperam que as indefinições do Labour sobre o Brexit sirvam para afastar o veterano, já que a região votou fortemente (59%) a favor da saída da UE no referendo de há três anos. Esquerdista sem papas na língua, este filho de um mineiro e de uma empregada de limpeza estudou graças a uma bolsa e seguiu as pisadas do pai a extrair carvão, tendo sido presidente do Sindicado Nacional dos Mineiros.
Vereador nos anos 60, na década seguinte entrou para a Câmara dos Comuns e nunca mais de lá saiu. Durante a dura greve dos mineiros contra o Governo da conservadora Margaret Thatcher, nos anos 80, doou o seu salário ao sindicato. Pacifista, republicano, eurocético, eterno rebelde (suspenso várias vezes do Parlamento por excessos e linguagem), o homem a quem chamam “The Besat of Bolsover” é leal ao líder Jeremy Corbyn. Skinner tornou-se conhecido pelo hábito de “mandar uma boca” na cerimónia anual em que a rainha faz no Parlamento um discurso a anunciar as prioridades do Governo. No momento em que os deputados são convocados pela monarca para irem à Câmara dos Lordes, o deputado diz algo breve sobre a atualidade política. Os assuntos vão da privatização dos correios ao Governo de coligação entre conservadores e liberais, aos compromissos de Isabel II nas corridas de cavalos de Ascot ou mesmo à atriz Helen Mirren, que ganhou um óscar a fazer de Isabel II. Em 2015 falhou, porque os nacionalistas escoceses, que tinham multiplicado a sua representação em Westminster, tentavam por tudo tirar aos trabalhistas os lugares na primeira fila dos Comuns. Skinner distraiu-se a garantir o seu assento e não pensou em nada para dizer. Este ano limitou-se a responder ao convite régio com um lacónico “não, não vou”. Nunca entrou, aliás, na câmara alta do Parlamento.
Sondagem do dia
Esta quarta-feira a sondagem tem de ser esta, é A sondagem. O famoso modelo MRP do YouGov, que conseguiu prever a perda de maioria de Theresa May enfurecendo os conservadores nos dias antes das eleições de 2017, está cá fora e volta a reforçar as hipóteses de que os conservadores consigam mesmo a maioria absoluta. Esta sondagem tornou-se a mais antecipada de toda a campanha porque utiliza um método diferente. Primeiro agrupa por características as pessoas que têm mais probabilidades de votar em cada partido (por exemplo mães solteiras com rendimentos abaixo de um determinado valor e sem educação superior estariam mais próximas dos conservadores) e depois conta quantas pessoas com essas características existem em cada círculo eleitoral. O nível de precisão parece ter dado resultados em 2017 e desta vez coloca os conservadores com 43% dos votos (339 lugares), os trabalhistas com 34% (231 deputados), os liberais com 12% (cerca de 15) e 5% para os nacionalistas escoceses que vão dominar a Escócia enviando para Westminster, possivelmente, 41 deputados. A margem de erro ainda pode fazer cair o número de deputados conservadores para 311 mas também pode fazer essa maioria engordar até aos 367. Um parlamento dividido ainda é uma possibilidade.
Saído do manifesto
A Educação aparece logo a seguir ao Serviço Nacional de Saúde no pódio das preocupações principais dos britânicos para estas eleições. Em primeiro lugar está o ‘Brexit’ mas independentemente do que aconteça nesse campo, outros há que precisam de atenção. Boris Johnson está a tentar encontrar forma de oferecer aos pais com filhos em idade pré-escolar ajudas com o custo das creches. Uma opção é oferecer 10 semanas de creche grátis aos pais com crianças com três ou quatro anos ou, em alternativa, 15 horas semanais de creche sem custos para todos as crianças com dois anos. Já o ‘labour’ promete que todas as crianças até aos quatro anos podem usufruir de 30 horas semanais numa creche sem que os pais tenham de pagar por isso. Os liberais-democratas prometem, por seu lado, uma “bolsa de competências” de 10 mil libras para todos os adultos que queiram melhorar a formação e podem utilizar esse dinheiro ao longo de décadas, como preferirem, desde que seja utilizado para formação.