Mind the Vote

Mind the Vote #21. “Leave, actually” ou a ubiquidade de uma mensagem política

“Get Brexit done” é de certeza a frase que Boris Johsnon mais disse ao longo dos seus 54 anos de vida, embora só tenha começado a proferi-la há uns seis meses. A mensagem tem de passar de alguma forma e tornou-se o maior símbolo, talvez o único símbolo, imediatamente reconhecível pelo eleitorado nesta campanha dos conservadores. Se isso é bom ou mau ainda não sabemos, mas sabemos, por exemplo, que o serviço nacional de saúde (NHS) está a aproximar-se do Brexit na lista das prioridades dos britânicos para estas eleições. Neste Mind the Vote há um vídeo de Johnson a lembrar cenas de comédias românticas, uma peruca numa vassoura, uma cena de um dos melhores filmes de sempre e uma lição de história sobre hustings

Sendo de britânicos que tratamos neste pedacinho de espaço cibernético, não era totalmente imprevisível que uma coisa destas viesse a acontecer. Havia a esperança, era tema corrente nos chats de fanáticos do Brexit, que há meses sonhavam com uma eleição para acompanhar, mas, mais do que uma certeza, era um sonho. O que acontece aos sonhos é que por vezes se tornam realidade - e ainda bem. Boris Johnson gravou um vídeo de campanha em que a sua principal mensagem para o país, a urgência em consolidar o Brexit, é transmitida através de mensagens escritas à mão em cartazes brancos, que vai passando lentamente enquanto olha uma potencial eleitora com ar apaixonado, exatamente como Andrew Lincoln fez a Keira Knightley em “Love, actually” (O amor acontece), o über-clássico de Natal que o pessoal do Mind the Vote vai fazer questão de rever na quadra adequada.

“Com alguma sorte teremos o Brexit no próximo ano”, lê-se num dos cartazes. “Isto se o Parlamento não bloquear tudo de novo”, diz o seguinte, entre parêntesis. “Se escolheres o outro tipo arriscas mais um Parlamento suspenso”, é mais uma das mensagens, referindo-se à possível ausência de maioria.

Menos de meia hora depois foi a vez de Jeremy Corbyn tentar a sorte na arena da pop culture, ao gravar um episódio de “Mean Tweets”, invenção brilhante do comediante e apresentador de televisão norte-americano Jimmy Fallon, que já ganhou vida própria e é ferramenta que muitas celebridades utilizam para denunciar comportamentos racistas, machistas e bullying ou apenas para se rirem um pouco das coisas que correm sobre eles na internet.

No vídeo, intitulado “Jeremy Corbyn’s Mean Tweets”, o líder trabalhista aparece sentado ao lado de uma lareira a ler tweets reais a si dirigidos, como “Educação sem custos para toda a gente? OK, mas quem é que vai pagar isso? O senhor Corbyn ainda acha que há uma árvore mágica de dinheiro”. E o vídeo corta para um barquinho de madeira dentro de uma garrafa de vidro enquanto Corbyn diz: “E há, nas Ilhas Caimão”.

É seguro dizer, portanto, que ambos os líderes partidários tiraram as luvas e partiram para o confronto duro ou, no equivalente britânico, para as referências natalícias das comédias românticas e das lareiras aconchegantes. Cada um escolhe as suas armas.

Por exemplo, a líder dos unionistas norte-irlandeses (DUP), como é mulher, enveredou por um caminho muito mais chato: o da política a sério. Arlene Foster chamou Johnson à razão por ter “traído os irlandeses” ao prometer pessoalmente, no congresso do DUP de 2018, que não haveria fronteiras no mar da Irlanda, coisa que o acordo de saída da UE torna inevitável, segundo uma avaliação interna do próprio Governo de Johnson. “O meu partido já não leva a palavra do primeiro-ministro a sério. Se voltarmos para Westminster temos de verificar primeiro se tudo o que o primeiro-ministro diz é de facto e completamente verdade”, disse Foster, acrescentado um ditado: “Uma vez mordido, duplamente desconfiado”. Uma espécie de “gato escaldado de água fria tem medo” e - alerta de apontamento natalício - primeiro verso de uma estrofe de “Last Christmas”, dos Wham.

O ministro irlandês dos Negócios Estrangeiros, Simon Coveney, voltou a dizer esta terça-feira, em Bruxelas, que “obviamente” seriam necessárias fronteiras alfandegárias e que tal tinha ficado claro aquando da assinatura do acordo de saída (withdrawal agreement). “A UE clarificou que a ideia é minimizar o impacto nos produtos que viajem da Grã-Bretanha para a Irlanda do Norte mas, ao mesmo tempo, frisou que os produtos que cheguem à Irlanda do Norte têm de ser verificados porque podem acabar dentro do espaço europeu [República da Irlanda] e a UE vai querer saber que tipo de coisas estão a entrar no seu mercado”, disse o governante.

Johnson terá de explicar em breve como pensa “vender” aos unionistas uma fronteira que é mais um passo para o isolamento da ilha como um todo e, por isso, uma vitória para os republicanos (católicos) que querem unificar a Irlanda como nação independente do Reino Unido e dentro da UE. Não vamos recontar aqui toda a história dos Troubles mas não é difícil entender o perigo de uma manobra destas, ainda que um referendo à união só seja possível mais ou menos a uma geração.

Foto do dia

Boris Johnson esteve esta terça-feira numa fábrica de escavadoras e outras máquinas e aproveitou para empurrar uma contra uma parede de esferovite onde, antes da intervenção do primeiro-ministro, se liam as palavras “gridlock”, algo como “encruzilhada”, referência ao Parlamento que, durante mais de três anos, não conseguiu reunir consensos para aprovar o Brexit. A ubíqua mensagem da campanha de Johnson, “Get Brexit Done”, partiu literalmente paredes, mas será suficiente para quebrar as barreiras do anticonservadorismo ainda enraizado nas zonas que mais sofreram sob primeiros-ministros como Thatcher?
Stefan Rousseau - PA Images

A frase

“Onde devia ter visto uma tragédia, Johnson viu uma oportunidade”, disse esta terça-feira, em entrevista à Sky News, Dave Merritt, pai do jovem Jack Merritt, que morreu esfaqueado por um terrorista em London Bridge há duas semanas. O pai de Jack tem criticado o primeiro-ministro pelo que considera a utilização indevida da morte do seu filho como plataforma para mostrar as políticas “de lei e ordem”. Leia-se, aproveitamento eleitoral.

Uma história fora do radar

A economia do Reino Unido não apresentou qualquer crescimento nos três meses até outubro, o último prazo do Brexit que acabou por não o ser. A conclusão é do Instituto de Estatística britânico, que publicou esta terça-feira o último boletim económico até às eleições de dia 12.

As quedas nos sectores da manufatura e da construção prejudicaram os indicadores económicos britânicos, “contribuindo para a estagnação do crescimento do Produto Interno Bruto”, lê-se no relatório. Nos três meses até setembro, o período anterior ao agora analisado, o crescimento fixou-se nos 0,3%, numa altura em que pairava sobre o Reino Unido o receio de uma recessão. O porta-voz do Instituto de Estatística, citado pela Sky News, resumiu de forma mesmo muito límpida os números publicados: “A economia do país não cresceu nos últimos três meses”.

Razões para o aparente marasmo: incerteza dos investidores e contração do consumo por causa do Brexit. "A contração na construção de casas e infraestruturas é bastante acentuada e os dados sugerem que as incertezas do Brexit e o panorama global estejam ligados e contribuam para este cenário de fraco desempenho da nossa economia”, disse a mesma fonte.

Isto no dia em que o ministro-sombra das Finanças, o homem que vai tomar conta das contas britânicas se o ‘Labour’ vencer as eleições, John McDonnell, disse que a libra subiria de valor caso os trabalhistas vencessem. Isto é contrário a todo o senso comum, que diz que os grandes investidores tendem a ficar com pés frios quando confrontados com manifestos políticos que preveem impostos descomunais (para padrões britânicos ou irlandeses, claro). Mas há uma possibilidade. As sondagens que vão dando uma maioria aos conservadores, mais “market friendly” no geral, têm dado à libra uma estabilidade que lhe escapava desde que Theresa May perdeu a maioria nas eleições de 2017. Jordan Rochester, analista de flutuações cambiais, disse a “The Guardian” que uma vitória trabalhista seria “dor no início e ganho mais a longo prazo”.

Isto quer dizer que apesar de haver previsões que colocam a libra a cair 4% logo na sexta-feira caso o ‘Labour’ vença (neste momento está 10 pontos abaixo do que antes do Brexit, se quisermos mesmo apontar dedos acusadores), os maiores gastos do Estado e um referendo que faça o Reino Unido ficar na UE podem, em última análise, levar a libra aos valores gloriosos do antigamente. E, como voltaríamos todos a poder ir para lá trabalhar sem visto ou autorização, só durante as férias de verão, e regressar com o dobro do dinheiro assim que o trocássemos para euros, o cenário só tem vantagens.

Naftalina eleitoral

Há uma bela tradição democrática britânica que se dá pelo nome de hustings. A palavra vem das antigas línguas nórdicas e significa “casa de assembleia”. Hoje é o nome utilizado para encontros, normalmente pré-eleitorais, em que os candidatos a deputados por cada círculo eleitoral se reúnem para ouvir queixas dos eleitores, responder a perguntas e debater com os seus concorrentes diretos as soluções para as supracitadas queixas. Participar em hustings ainda é ponto de honra para quem quer ser visto como um político naquela conceção mais clássica do termo. Boris Johnson, por exemplo, não participou no hustings organizado a 5 de dezembro na sua circunscrição de Uxbridge e South Ruislip, tendo sido criticado pelos demais candidatos daquela localidade. Noutro círculo, um eleitor zangado com a ausência do seu candidato local fez isto:

Qualquer parecença com um famoso político britânico é pura coincidência. O alvo neste caso é Michael Fabricant, também do Partido Conservador mas candidato por Lichfield.

Mas vamos à história dos hustings. Há muitos, muitos anos, nos primórdios da democracia britânica e com as restrições à participação universal que teve até tão tarde, husting era o nome dado a uma estrutura física (pavilhão, sala, palanque) construída num determinado lugar onde estivesse programada uma eleição e para onde os diversos candidatos a cargos da administração autárquica eram levados pelo mayor para debaterem. Quando os discursos de cada um terminavam, o mayor pedia aos eleitores presentes que erguessem o braço de modo a votarem, numa primeira mostra informal de simpatias, no seu candidato preferido.

Isto servia para que os candidatos pudessem avaliar as suas reais hipóteses de serem eleitos se continuassem na corrida. Se depois deste processo ainda continuasse a haver mais candidatos do que empregos, começava a “eleição a sério”: cada eleitor declarava verbal e publicamente em quem desejava depositar o voto e a escolha era registada. Por vezes, mais candidatos surgiam durante a votação e voltava tudo à fase dos discursos em cima do tal palanque de madeira, sala, pavilhão com o nome husting.

As eleições podiam prolongar-se ao longo de meses, desde que os eleitores continuassem a querer votar e os candidatos a disputar a posição. No século XVIII, foi imposto um máximo de 15 dias. Podemos apenas imaginar o que aconteceria, o tempo que seria preciso, nestas eleições gerais de 2019, em que alguns círculos eleitorais têm três candidatos com francas hipóteses de vencer, se as eleições ainda se ganhassem pela força (e duração ) dos discursos.

Sobre discursos longos, emocionantes, extenuantes, apaixonantes, capazes de mudar a história, aqui fica provavelmente uma das nossas cenas preferidas do Mind the Vote de toda a história do cinema:

Sondagem do dia

O mercado único, a imigração, as tarifas e “all things Brexitainda ocupam o topo das preocupações dos britânicos, com 57% dos inquiridos na última sondagem da empresa Ipsos MORI a colocarem a saída ou permanência da UE em primeiro lugar na lista de preocupações para esta eleição; mas a percentagem dos que elegem o Serviço Nacional de Saúde como um dos assuntos mais importantes no momento de votar subiu 18 pontos, para 54%, desde a última consulta, em outubro, o que pode ser boa notícia para os trabalhistas, mais associados à proteção dos serviços públicos do que os conservadores. Em terceiro lugar aparece a Educação, com 21%, depois a Economia, com 19%. Esta aproximação entre Brexit e NHS também se verificou antes das eleições de 2017, quando Theresa May perdeu a maioria que conservadores tinham desde 2015.