Faltam precisamente duas semanas para as eleições britânicas de 12 de dezembro de 2019, mas podiamos ser perdoados se confundíssemos a manhã desta quinta-feira com um dia perdido algures nos anos 90, quando os conservadores eram o “nasty party”, algo como o “partido desagradável”, numa tradução mais simpática do que exata. Esse rótulo marcou o partido de forma muito profunda e até há bem pouco tempo andou pendurado, quel cachecol de pelo de raposa, em redor dos pescoços dos deputados e dirigentes do partido.
A forma crua como a primeira-ministra Margaret Thatcher tratou o declínio acentuado dos centros industriais do país, combatendo o poder dos sindicatos, as tiradas xenófobas e ódios vários que nutriam nos anos 80 e 90 levaram a revista de esquerda “New Stateman” a escrever, em 2010, que os conservadores se deixaram definir pelo que odiavam: “o euro, a União Europeia, candidatos a asilo, homossexuais e criminosos”.
Antes de irmos ao modus operandi para estas eleições do partido que governa há nove anos, é importante referir que a ‘nega’ de Boris Johnson em comparecer no primeiro debate de sempre a envolver os principais líderes partidários britânicos numa discussão exclusivamente sobre o ambiente também nos faz viajar um pouco no tempo. Até quando poderá um líder partidário esquivar-se a este tipo de confrontos?
Nigel Farage já tinha dito que não ia, mas do Partido do Brexit não se esperam discursos inflamados em defesa do ambiente. Para assinalar a ausência dos dois líderes, o britânico Channel 4 revelou que vai colocar duas esculturas de gelo nos lugares onde Johnson e Farage deviam estar. Ao fim da tarde correu o rumor de que as esculturas representariam de facto os dois homens, em tamanho real, derretendo lentamente sob o calor das luzes do palco, mas não: dois globos terrestres, um com o símbolo dos conservadores por baixo, outro com o do Partido do Brexit, já estão nos seus lugares:
As táticas antigas do partido “desagradável” parecem ter regressado à campanha, com “The Guardian” a revelar uma série de documentos internos que mostram uma estratégia pouco convencional dos conservadores para garantirem os votos de que precisam: atirar podres para cima dos rivais, muitos deles falsos. Os conservadores que defendem assentos parlamentares contra trabalhistas podem contar com um documento de 17 páginas, recheado de frases simples e fáceis de dizer e entender, destinadas àqueles encontros mais fugazes com eleitores debaixo das ombreiras das portas. Entre as acusações escolhidas estão várias já desacreditadas por economistas, como, por exemplo, a de que os planos de Jeremy Corbyn para a economia acrescentariam a cada agregado familiar uma fatura de impostos na ordem das 2400 libras por ano (cerca de €2.800).
Se olharmos para a história eleitoral dos últimos 100 anos, os trabalhistas foram sempre os principais inimigos dos conservadores e vice-versa, mas nestas eleições ainda ninguém sabe qual será o peso real dos Liberais Democratas, único partido com implantação nacional total e claramente a favor da permanência do Reino Unido na UE. Esse peso será traduzido em votos e não faltam casos de conservadores a saltar as barricadas para o lado dos ‘lib-dems’, incluindo ex-ministros que concorrem em círculos renhidos contra o seu antigo partido.
Para estes recém-formados inimigos os conservadores reservaram não 17 mas 19 páginas de críticas. Algumas são “nasty”: caso queiram, os conservadores podem dizer aos eleitores que os ‘lib-dems’ querem aplicar políticas “pró-proxenetas” e ensinar às crianças que a prostituição é uma carreira. A acusação é justificada por um mal-entendido envolvendo um ex-dirigente local liberal, que já explicou várias vezes que quis dizer exatamente o contrário, usando o exemplo da prostituição como uma de várias profissões alvo de estigma.
Os ‘lib-dems” também são acusados de desinvestir na defesa do país e de quererem lançar “mísseis sem nada lá dentro”, o que não é verdade. A atual líder do partido, Jo Swinson, disse estar disposta a usar o programa nuclear do Reino Unido em defesa do país e acabar com esse sistema dissuasor, conhecido por “Trident”, deixou de fazer parte do programa liberal.
Estes dossiês fazem parte de uma estratégia maior: denegrir os trabalhistas, em vez de passar muito tempo a falar de política e políticas. Além da questão do Brexit e do investimento na contratação de mais pessoal para o NHS (serviço de saúde estatal britânico), Johnson tem-se esforçado pouco para explicar as razões pelas quais os britânicos devem votar nos conservadores, além de terem um acordo do Brexit “pronto para o forno” e, claro, por Johnson não ser Corbyn.
No início da campanha os conservadores editaram um vídeo do ministro-sombra do Brexit, o trabalhista Keir Starmer, para fazer crer que este ficara sem palavras perante a pergunta de um jornalista sobre os planos do ‘Labour’ para negociações futuras com a UE. Era falso. Starmer respondeu - e com pormenor. O silêncio e o ar perdido com que surge no seguimento da pergunta é simplesmente um pedaço cortado do início da entrevista, durante o qual Starmer está em silêncio porque está a ouvir a pergunta.
No primeiro debate entre Johnson e Corbyn, no início do mês, a campanha conservadora teve mais um momento criticável ao transformar o seu nome no Twitter para parecer uma conta de verificação de factos oficial (factcheckUK), a partir da qual emitiram ataques aparentemente imparciais às medidas que estavam a ser apresentadas por Corbyn.
Foto do dia
A frase
“As coisas estão muito mais renhidas do que as sondagens dizem. Sem uma maioria, o pesadelo continua. TODOS os outros deputados vão unir-se como um gangue para pôr um fim ao Brexit e dar aos cidadãos da UE o direito ao voto - é bastante simples”, escreveu um dos principais assessores e conselheiros de Boris Johnson, Dominic Cummings, estratego responsável pela campanha vencedora do Brexit em 2016 e o homem que inventou a frase “Take back control”, a que mais perfeitamente captou o sentimento que levou a este enorme voto de protesto.
Uma história fora do radar
Os planos económicos de ambos os partidos foram arrasados pelo Instituto de Estudos Fiscais (IFS), um organismo independente. Pensar-se-ia que os trabalhistas seriam as principais vítimas do IFS, com todos os seus planos de aumento de impostos e apologia do endividamento, mas também os conservadores estiveram na mira dos peritos, ainda que mais pelo cadastro passado. O veredicto é que ambos os programas eleitorais têm graves falhas na explicação exata das medidas, mais propriamente na forma como pensam financiá-las, pelo que levam com a designação “não credíveis”.
Paul Johnson, diretor do respeitado centro de estudos, disse aos jornalistas que apesar de o manifesto dos conservadores em 2017 ter estipulado um emagrecimento nas despesas, na realidade os gastos com serviços públicos aumentaram e deverão fixar-se em mais 27 mil milhões de libras (€31.600 milhões) no próximo ano. Quanto ao programa trabalhista, a crítica é ainda mais acentuada, já que o partido pressupõe um aumento da despesa dos 50 mil milhões prometidos em 2017 para 80 mil milhões. Isto excluindo os 58 mil milhões que Corbyn promete às Mulheres Contra a Desigualdade das Pensões. Paul Johnson classifica estes montantes como “extraordinários” e chama a atenção para o facto de este último número poder ser maior do que os valores que o ‘Labour’ pensa destinar a subsídios para pessoas pobres em idade ativa.
Naftalina eleitoral
Hoje lembramos como, tantas vezes, os candidatos se desviam do guião para irem atrás de modas do momento. A culpa também é dos jornalistas, quando dão muito mais espaço ao “ridículo”, “bizarro” e “pitoresco” das más escolhas de gravata, sardinhadas e matanças do porco do que à política. Já este ano começaram a circular histórias falsas sobre Jo Swinson, a líder dos Liberais Democratas, e o seu suposto ódio por esquilos, tão visceral que a levava a matá-los das mais variadas formas. Como podemos ter a certeza de que toda a gente vai entender que isto é só parte do chorrilho de parvoíce que escorre pelas timelines das redes sociais e não, de facto, verdade?
Houve um momento em que as eleições de 2015 no Reino Unido, de um dia para outro, se transformaram num concurso sobre que candidato teria mais perícia e graciosidade no ato de consumir alimentos. Tudo começou quando Ed Miliband, líder trabalhista que concorria contra o primeiro-ministro conservador David Cameron e acabou por perder, foi fotografado a comer uma sanduíche com bacon. O resultado foi, como dizer, terrível para Miliband.
Com medo do embaraço que poderia vir a enfrentar caso fosse apanhado pelos flashes numa situação idêntica, Cameron recusava-se a consumir alimentos em público (como fez entre nós Cavaco Silva, depois de um episódio famoso com bolo-rei nas presidenciais de 1996). Quando Cameron se viu obrigado a comer, num churrasco, sentou-se e ingeriu um cachorro quente num prato, de garfo e faca. Pode parecer estranho mas Nigel Farage, então líder do Partido para a Independência do Reino Unido (UKIP), convidou os jornalistas a fotografarem-no na arte de bem comer uma sanduíche - e houve quem aceitasse, para desespero de outros jornalistas.
Até Nick Clegg, o liberal democrata que em 2010 aceitou coligar-se com Cameron e por isso foi vice-primeiro-ministro cinco anos, aceitou dar umas dentadas num pão oferecido por um jornalista no meio da campanha. Foi uma altura estranha em que se ouvia nas rádios coisas como “Prime minister! Prime minister! Mr. Cameron! Would you like to try to eat this bacon butty?”. Coisas sérias foram escritas sobre estes estranhos dias. Algumas sobre o seguidismo dos meios de comunicação, outras sobre o propósito da utilização da fotografia (ajuda-nos na decisão sabermos as caretas que um futuro primeiro-ministro faz a comer pão?), muitas sobre aquilo de que não se falou enquanto se falava de homens crescidos a comer pão com bacon. O irmão de Ed Miliband, David (por ele vencido quando tentou ser líder do Partido Trabalhista) também foi ridicularizado, um dia, ao ser retratado de banana em riste. Mas até ele já se ri disso...
Sondagem do dia
É a confirmação dos piores receios dos trabalhistas, apesar de sabermos todos que os medos podem ou não ser sustentados por factos. A confiança nas sondagens tem vindo a cair um pouco por todo o mundo. Utilizam-se para prever comportamentos políticos, mas quando as margens são grandes toda a gente presta especial atenção - nem que seja para depois podermos dizer quão erradas estavam as previsões e por que gigantesca distância.
A última consulta do YouGov (que utiliza um método muito mais exaustivo e conseguiu prever que os tories iriam perder a maioria em 2017 mas que deve, explica “The Guardian” , ser lida com cuidado) dá aos conservadores uma maioria confortabilíssima de 359 deputados (em 650), um pulo considerável dos 317 que conseguiram em 2017. Em segundo lugar estão os trabalhistas, mas de nada servirá se os números do estudo se confirmarem: 211 deputados, uma queda de meia centena desde 2017 e assustadoramente perto do que Michael Foot conseguiu em 1983: 209. É uma linha psicológica tão densa que se torna física e difícil de ultrapassar. Corbyn continuar como líder depois de um resultado destes seria um cenário, no mínimo, complicado.
Em terceiro lugar posiciona-se o Partido Nacional Escocês (subindo de 35 para os 43 lugares) e, em quarto, com 13, os Liberais Democratas, mais um do que em 2017. É um resultado muito deprimente para um partido que quer representar os milhões que votaram pela permanência do Reino Unido na UE. Dado o sistema de “vencedor leva tudo” (“first past the post”, isto é, círculos uninominais onde é eleito o mais votado e os restantes votos se desperdiçam) os ‘lib-dems’ podem ter milhões de votos que não chegarão a traduzir-se em mandatos.
Saído do manifesto
O manifesto dos Liberais Democratas tem muita informação relativa à inclusão de minorias étnicas nas empresas e serviços públicos, direitos das mulheres e dos refugiados. As quotas são um dado adquirido e devem ser “ainda mais ambiciosas do que hoje”. Pelo menos 40% dos membros das direções das empresas cotadas em bolsa devem ser mulheres, dizem os ‘lib-dems’, o recrutamento sem acesso ao nome do candidato deve ser utilizado “em todo o sector público” e “encorajado no privado” e as avaliações sobre diferenças salariais, oportunidades, quotas, etc. devem ser feitas com mais regularidade e fornecer explicações detalhadas quando as exigências de igualdade não tiverem sido atingidas. Os liberais querem também providenciar gratuitamente produtos de higiene feminina nas escolas, hospitais, abrigos, bibliotecas, estádios, consultórios médicos, universidades, etc. As escolas devem introduzir uniformes unissexo e, nos passaportes, deve passar a aparecer ‘género: X’ para quem não se identifique com o sexo masculino nem com o feminino.