As eleições de 12 de dezembro no Reino Unido estão a tornar-se uma montra para alguns medos enraizados, nomeadamente por parte de comunidades religiosas que se sentem atacadas pelos políticos que representam as duas opções viáveis de governo: trabalhistas e conservadores. O dia ficou marcado pela exposição por vários líderes religiosos das suas inquietações perante a complacência dos principais líderes quando confrontados com episódios de ódio étnico. Nem um país tão culturalmente apetecível a talentos de todas as latitudes está imune à xenofobia.
O golpe mais certeiro foi desferido por Ephraim Mirvis, o Rabino Chefe britânico, que supervisiona as congregações judaicas do país e que, num artigo para “The Times”, arrasa a atual liderança trabalhista e garante que há razões para os judeus temerem um governo de Jeremy Corbyn. É raríssimo um líder religioso no Reino Unido assumir uma posição política tão clara. Tradicionalmente próxima do ‘Labour’, a comunidade tem vindo a afastar-se nos últimos 15 anos. Mirvis escreve que “a alma da nação está em risco” e, apesar de não querer dizer às pessoas em quem votar, refere que a chefia de Corbyn “é incompatível com os valores britânicos de que tanto nos orgulhamos - dignidade e respeito por todas as pessoas”.
No seguimento desta denúncia, o arcebispo de Cantuária, figura religiosa máxima da Igreja de Inglaterra (acima dele, só a rainha) emitiu um comunicado em que secundava os medos expressos pelo rabino. Também o Conselho dos Muçulmanos Britânicos (BMC) se juntou ao clamor contra a impunidade que parece imperar no que toca às ofensas étnicas. O comunicado focava, no entanto, as falhas dos conservadores na erradicação daquilo que o BCM considera a “desculpabilização da islamofobia” dentro do Partido Conservador: “É muito claro que a islamofobia é tolerada dentro do partido e que este permite que ela se espalhe pela sociedade”. Ambas as acusações estão a ser investigadas há meses pela Comissão para a Igualdade e Direitos Humanos.
“The Guardian” escreveu no início do mês que pelo menos 25 eleitos para vários cargos locais pelo Partido Conservador tinham publicado nas redes sociais comentários considerados danosos para a integridade dos muçulmanos britânicos. Mas Corbyn também já apoiou publicamente um artista que desenhou um grafito com vários estereótipos muito pouco simpáticos para a comunidade judaica, tendo depois pedido desculpa. Esta terça-feira, pressionado a fazer o mesmo, o líder trabalhista negou-se a pedir desculpa aos judeus que se possam sentir ofendidos pelo comportamento de membros do seu partido. Era assim tão difícil? É difícil não recordar este título de uma canção do também britânico Elton John e os seus versos iniciais: “What have I got ave to do to make you love me? / What have I got to do to make you care?”.
Os trabalhistas tiveram pelo menos uma boa notícia: dos mais de três milhões de pessoas que se registaram para votar no dia 12, dois terços têm menos de 34 anos, um fator significativo para o partido numa altura em que, como um sábio das sondagens provou numa análise para a BBC, nenhum fator é mais poderoso do que a idade quando se trata de decidir a quem entregamos a nossa precisosa cruzinha.
Para nos ajudar a lidar com tudo isto e a encontrar significado em tanta informação conflituante que nos chega a todos os minutos e por todos os canais, existe a arte - e ainda bem. Domingo à noite comecei e esta terça-feira quase terminei de ler “A Barata” (Gradiva), sátira brextiana de Ian McEwan que coloca no lugar de primeiro-ministro um incauto inseto. O pobre bicho acorda no número 10 de Downing Street, é chefe do Governo e não faz a mais pequena ideia do que ali está a fazer nem de como ali foi parar. O adjetivo que deriva da palavra Brexit - “brextiano” ou “brextiana” - é, como o livro de McEwan, uma vénia a Kafka e aos seus enredos opressores, abstrusos, que nos fazem sentir dentro de uma metafórica camisa de forças. Não sei se o leitor conhece a reinvenção da capa de “O Processo”, de Franz Kafka, feita por um utilizador do Twitter e na qual, em vez do título original, aparece com o mesmo design a palavra “Brexit”. Se nunca viu, está aqui em baixo:
Não falta arte a jorrar da confusão que se apoderou dos britânicos nos últimos três anos e meio. O romance de Jonathan Coe “O Coração de Inglaterra”, dizem-me pessoas cujas opções literárias costumo seguir algo acriticamente, é mais uma grande obra que surge no seguimento do tumulto político pós-Brexit. Mais conhecido de todos, e com provas dadas na arte difícil de nos manter agarrados à trama, não esquecer John Le Carré e o seu mais recente “Agente em Campo”, editado em Portugal pela D. Quixote. “Imolação pelo Brexit” é uma das frases que o espião de serviço utiliza para descrever o estado da política britânica.
Também o escultor britânico Jason deCaires Taylor revelou há pouco o seu mais recente trabalho: três leões emaciados, ossudos e desgastados, literalmente a morrer na praia de Dover, cidade no sul do país, conhecida pelas suas falésias de giz branco, que além de ser um dos mais importantes portos da Europa (e também o que mais poderia sofrer se a saída se fizesse sem acordo) é o local onde desaguam muitas das embarcações de migrantes vindas de Calais, no norte de França. O leão, esse símbolo maior do império, do poder, parece implorar misericórdia a quem passa na praia.
Foto do dia
A frase
“Há um novo veneno, expelido pelas cúpulas da liderança, a apoderar-se das raízes do Partido Trabalhista.” A dura afirmação é do Rabino Chefe do Reino Unido, Ephraim Mirvis, que supervisiona as congregações judaicas do país, referindo-se ao problema complicado de antissemitismo no Partido Trabalhista, que continua a ser uma das maiores pedras no sapato de Corbyn para esta eleição.
Uma história fora do radar
A nossa história de hoje é uma espécie de aula teórica, por isso menos divertida, da cadeira de “brexitês”, essa língua estrangeira e nova. Estas eleições podem não dissipar o fantasma do ‘no deal’, pelo que é preciso explicar os perigos que ainda se escondem no caminho das negociações. Não se tem falado da possibilidade de um ‘no deal’ porque toda a gente fala de eleições e pouco mais. Parece que, se for Boris Johnson a governar, o Brexit passa a dado adquirido, o acordo que assinou com Bruxelas é aprovado no Parlamento e o mundo segue para qualquer outro país onde a política se tenha tornado igualmente um filme de Buñuel. Mas não é bem assim.
Os conservadores têm feito um trabalho notável de transformar o Brexit num problema que o Parlamento criou (impedindo que vários acordos, primeiro de May, agora de Johnson, fossem aprovados), num imbróglio que está a impedir o partido de começar a tratar do que interessa: saúde, educação, crime. Na verdade, foi um primeiro-ministro conservador, David Cameron, que lançou o fósforo nas pinhas secas ao prometer um referendo à UE se vencesse as eleições. Cumpriu a promessa e aqui estamos, no epicentro de uma tempestade que sempre foi mais desestabilizadora entre os conservadores do que para o país no geral.
O pior já passou? Não. O Brexit não acaba a 12 de dezembro, nem a 31 de janeiro (nova data estabelecida por Johnson com a UE), porque é preciso negociar um acordo comercial com os 27 que seja benéfico para ambas as partes. Basta recordar os muitos protestos dos pescadores britânicos sobre a necessidade de recuperarem as milhas piscatórias ao largo da costa do Reino Unido, hoje partilhadas com outros países europeus, para nos percorrer um arrepio - as negociações que se perfilam não serão mais fáceis do que as que já testemunhámos. Johnson, por outro lado, já prometeu que o período de transição não irá além de dezembro de 2020, embora seja pouco provável que todas as áreas do futuro relacionamento do Reino Unido com a UE fiquem fechadas num ano. Se, chegados ao fim desse prazo, não houver acordo, pressupõe-se que o Reino Unido erga as velas amareladas do seu último grande navio mercante e se lance na descoberta de parceiros comerciais por terras inexploradas.
O ‘no deal’ ainda pode acontecer antes do fim de janeiro: primeiro se Johnson não tiver maioria parlamentar para aprovar o seu acordo ou, noutro cenário, se Corbyn, mesmo que vença, não conseguir que Bruxelas lhe conceda novo adiamento do Brexit para negociar o seu próprio acordo. Se o de Johnson for aprovado, o cenário de ‘no deal’ não desaparece - apenas não será o mesmo tipo de ‘no deal’. Vamos explicar: depois da eventual aprovação do acordo e da saída a 31 de janeiro, há o período de transição, durante o qual as negociações para um acordo comercial podem falhar. Se até ao fim de 2020 (como Johnson promete) não houver qualquer acordo com a UE, o Reino Unido passa a fazer trocas comerciais ao abrigo das regras da Organização Mundial de Comércio.
O período de transição pode vir a revelar-se o mais tumultuoso de todo o processo: o Reino Unido já terá saído, tem menos “peso” porque já não é membro nem vota com os 27 e haverá oposição de alguns países - previsivelmente, França - a um acordo supervantajoso que seja equivalente a “ficar com os melhores pedacinhos da permanência sem as coisas chatas”, como Donald Tusk um dia disse que não podia acontecer.
Naftalina eleitoral
Mulheres, políticas e determinantes, assim são alguns dos nomes mais importantes da história da Escócia. E não estamos a falar de Maria Stuart, que reinou no século XVI e foi decapitada por ordem de sua prima Isabel I de Inglaterra. Se hoje temos Nicola Sturgeon a liderar os nacionalistas escoceses do SNP, e constantemente a rodar a faca do independentismo no flanco de Westminster, o primeiro grande momento do movimento nacionalista surge com a eleição de Winnie Ewing, que em 1967 retirou aos trabalhistas o lugar de deputado por Hamilton, com uma variação de votos de 37,9%.
Os trabalhistas detestavam-na, chamavam-lhe “conservadora vestida de fazenda tartan”, referência ao tecido denso e de xadrez tradicionalmente utilizado na Escócia. No seu discurso de vitória Ewing disse a famosa frase “Parem o mundo, que a Escócia quer entrar”. Começou a carreira com sérias dúvidas em relação ao projeto europeu, mas acabou por converter-se, tendo sido eurodeputada 20 anos (1979-1999). A própria Sturgeon considera-a uma inspiração, um ídolo de juventude que se mantém, até hoje, a única mulher antes da própria líder do governo regional a ter um impacto tão profundo na política escocesa. Ewing modificou a forma como os escoceses veem a UE e muitos dão-lhe crédito pela visão mais “política” e menos “economicista” do projeto que vigora até hoje a norte da fronteira.
Sondagem do dia
São as eleições da incerteza: será que os Liberais Democratas de Jo Swinson vão conquistar todos os votos dos remainers aos trabalhistas, ou vai ser Nigel Farage, ao leme do Partido do Brexit, o grande usurpador de votos, ferindo do morte as hipóteses de Johnson continuar como ocupante do número 10 de Downing Street? Não é possível adivinhar, mas o que é possível saber é que os eleitores conservadores estão mais certos do seu voto do que os de qualquer outro partido: 71% das pessoas que votam nos conservadores dizem que não vão mudar de ideias até ao dia das eleições - a cruzinha vai para a cor azul. No que toca aos eleitores trabalhistas, 62% garantem que o seu voto vai para Corbyn “no matter what” mas é nos Lib Dems encontramos o eleitorado mais volátil - apenas 53% garantem ter o voto já “trancado” na sua cabeça.
Saído do manifesto
Os Verdes querem uma revolução total nos transportes e garantem que só com atos revolucionários (e rápidos) podemos sonhar com uma redução de emissões de dióxido de carbono, para não condenar a Terra à total obliteração. Uma das medidas propostas no seu programa eleitoral, que pode receber votos da geração mais jovem apesar de os partidos mais tradicionais também já incluírem medidas arrojadas de proteção ambiental nos seus cadernos de encargos, é o investimento em ciclovias. Cerca de 2500 milhões de libras (2900 milhões de euros) estão orçamentados para construir e melhorar centenas de quilómetros de ciclovias. Os Verdes querem que toda extensão de caminho-de-ferro seja eletrificada, o que é um trabalho hercúleo. Apenas um terço das linhas o está, neste momento. A linha do equivalente britânico ao TGV é para esquecer, dizem os Verdes, que também descartam a construção ou expansão de qualquer aeroporto.