E já lá vão três semanas de campanha para as legislativas no Reino Unido. Assim que este Mind the Vote for publicado começa em Sheffield uma sessão especial do programa da BBC “Question Time” com a presença dos quatro principais líderes partidários: Boris Johnson, do Partido Conservador; Jeremy Corbyn, do Partido Trabalhista; Jo Swinson, dos Liberais Democratas, e Nicola Sturgeon, do Partido Nacional Escocês. Será uma oportunidade para ouvir as duas políticas mais europeístas do país, se calhar a única em formato de “confronto”.
Esta sexta-feira foi também o dia em que o partido-sensação-que-afinal-não-é-sensação-nenhuma-e-até-já-desistiu-de apresentar-candidatos-em-317-lugares apresentou o seu manifesto. Mas não podemos dizer “manifesto” (equivalente no Reino Unido a programa eleitoral), porque Nigel Farage não gosta da palavra. É um “contrato com as pessoas”, uma coisa mais empresarial ou iluminista, e menos panfletária. Farage garante que o seu Partido do Brexit fez testes junto da população e que a palavra que as pessoas mais rapidamente associavam à palavra “manifesto” era a palavra “mentira”.
Se calhar Farage tem razão em não dar o corpo ao manifesto. O trabalhista Corbyn apresentou as suas principais propostas na quinta-feira e foi arrasado por economistas e analistas que passaram o dia a enumerar, em artigos de opinião, nas rádios e televisões, os vários “billions” (milhares de milhões) que Corbyn quer investir no país. Curioso foi ver que ninguém parece ter problemas com as políticas em si, antes com o facto de serem difíceis de financiar sem soterrar o país em impostos. A fogueira onde os conservadores grelharam o manifesto trabalhista ainda arde e arde. Mas a defesa chega, por exemplo, dos ambientalistas, que viram no manifesto do ‘Labour’ um marco claro: a primeira vez que um partido de poder no Reino Unido aposta de forma tão clara na economia verde e na redução das emissões de dióxido de carbono.
A reação às ideias de Farage foi mais contida, até porque a estrela dos eurocéticos não concorre a primeiro-ministro nem ninguém pensa que o seu partido possa fazer mossa séria às aspirações dos conservadores. Mas isso não quer dizer que não haja lá bom material para quem é adepto de medidas tipo penso rápido. A promessa mais sonante de Farage é a de reduzir a imigração para 50 mil pessoas por ano. Como é que certos sectores, como a hotelaria e a agricultura ou a construção, encontrariam trabalhadores é coisa que o político eurocético não explica.
Em 2018, segundo o Instituto de Estatística Britânico, 258 mil pessoas entraram no Reino Unido com intenção de lá viver e trabalhar - a queda que Farage propõe é imensa e agrada ao seu público. “Temos de regressar aos níveis aceitáveis do pós-guerra. A imigração teve um grande impacto nos nossos serviços públicos e na qualidade de vida. À medida que nos aproximamos da marca dos 70 milhões de habitantes, vamos começar a ver os danos que isso provoca na vida das pessoas, na coesão das comunidades”, disse Farage.
Que fosse este o foco do seu “contrato” já era de adivinhar, mas há mais medidas com potencial geral para agradar: acabar com o sistema eleitoral “first part the post” (círculos uninominais), que impede os partidos mais pequenos de conseguirem um grande número de deputados, e adotar um sistema proporcional. Hoje cada partido apresenta apenas um candidato nos 650 círculos eleitorais para a Câmara dos Comuns (533 em Inglaterra, 59 na Escócia, 40 no País de Gales e 18 na Irlanda do Norte, num mapa revisto periodicamente). Em cada círculo, ganha quem tiver mais votos, mesmo que sem maioria.
Farage quer ainda abolir a Câmara dos Lordes, isentar de IVA a eletricidade fornecida às casas de primeira habitação e acabar com os impostos sobre as empresas que faturem 10 mil libras por ano ou menos (11.600 euros). O Brexit, considera, é apenas parte da “revolução política” desenhada para “dar poder às pessoas comuns”. Das medidas contidas nas 20 páginas divulgadas esta sexta-feira consta uma que visa promover uma espécie de democracia mais direta: se mais de cinco milhões assinarem uma petição a favor de um referendo, a consulta teria de ser autorizada pelo Parlamento.
Foto do dia
A frase
“Os líderes são avaliados pelos seus resultados eleitorais. Em 2017 estávamos muito mais atrás nas sondagens do que agora. Quem diz que esse raio não pode atingir-nos duas vezes?” É esta a perspetiva sobre as hipóteses de Corbyn apresentada pelo seu camarada Stephen Kinnock, deputado trabalhista rebelde que apoiou a aprovação de um acordo de saída da UE, mesmo se elaborado pelos conservadores
Uma história fora do Radar
Triste mas grande história, como tantas. O colapso do People’s Vote, o grupo de pressão por um segundo referendo, que organizou duas marchas pró-UE em Londres com números perto do milhão (coisa nunca vista desde a oposição à Guerra do Iraque, em 2003) é talvez uma das mais tristes de todo o calvário do Brexit. Maioritariamente organizado por voluntários, financiado por milhões de pequenas doações, o People’s Vote dissolveu-se num caos de egos, quezílias internas e golpes egoístas de alguns dos seus líderes.
Na contagem decrescente para umas eleições que podiam mudar o rumo do país (talvez ainda possam, apesar das negras sondagens para os lados dos trabalhistas), o People’s Vote não está ativo, as dívidas são mais que muitas e começam a surgir rumores de que alguns dos seus nomes mais sonantes tenham utilizado a plataforma para se lançar em voos políticos, depois de toda a poeira levantada pelo bater de pés de milhões de pessoas assentar.
Uma boa fatia da culpa vai para Roland Rudd, espécie de guru das relações públicas, ótimo a pedir e garantir financiamento, mas que destruiu o movimento ao despedir dois dos cérebros da campanha, James McGrory, ex-porta-voz do ex-líder liberal Nick Clegg, e Tom Baldwin, ex-diretor de comunicação do ex-líder trabalhista Ed Miliband, dois dias antes de o Parlamento aprovar as eleições legislativas de 12 de dezembro.
As razões da rutura são muito difíceis de definir, até porque, como escreve o jornalista e analista político Martin Fletcher, que conta esta história com detalhes dignos de uma grande intriga empresarial, quase toda a gente de topo no People’s Vote fez carreira na comunicação política, onde só é bom que consegue dizer só o que deve. Há, porém, pistas públicas para o desmoronamento do movimento: Rudd era da opinião de que o grupo devia apoiar abertamente a permanência na UE, enquanto Baldwin e McCrory diziam que essa posição iria afastar trabalhistas e conservadores desconcertados pela possibilidade de reverter uma decisão do povo sem aprovação do Parlamento para esse segundo referendo.
Naftalina eleitoral
Em dia de propostas para readaptar o sistema eleitoral, damos um pulinho até às Dark Ages. Da Idade Média até 1832, cada circunscrição britânica mandava para Westminster dois representantes (hoje vigoram os círculos uninominais), por vezes simplesmente nomeados pelo grande proprietário da zona, sem contestação nem necessidade de eleições. A não-atualização do recenseamento levava a que terras despovoadas ou mesmo abandonadas continuassem a ter direito a dois deputados, o que fazia com que muita gente corresse a instalar-se nelas em períodos pré-eleitorais para tentar encetar carreira política, conta a “BBC History Magazine”.
Sondagem do dia
Os britânicos não querem coligações, ponto final. Mas, a haver alguma, a que menos choca os eleitores é a união entre os conservadores e o Partido do Brexit (o balanço entre apoiantes e críticos desta solução é negativo, mas de apenas 6 pontos percentuais). A maioria dos eleitores “prefere” ver os trabalhistas em coligação com os liberais democratas do que com os nacionalistas escoceses do SNP e também prefere esse primeiro cenário a um possível entendimento entre os três principais partidos “à esquerda”.
A sondagem é da empresa GQR e testou não só intenções gerais de voto como possíveis cenários pós-eleitorais e mensagens partidárias. No geral, qualquer coligação é mal vista pelo público (o que não é estranho num país sem grande experiência delas e onde a última, entre conservadores e liberais de 2010 a 2015, coincidiu com um período de medidas de austeridade), mas a possibilidade de coligação entre o SNP e o ‘Labour’ tem 33% de saldo negativo entre eleitores a favor e contra. A possibilidade de coligação dos trabalhistas com os ‘lib-dems’ é apenas um pouco menos impopular: -22%.
Saído do manifesto
O manifesto dos conservadores só será apresentado, segundo os últimos rumores, este domingo, mas Boris Johnson vai largando pedacinhos aqui e ali. Esta sexta-feira, em Nottinghamshire, depois de dizer que o manifesto trabalhista é “irrealizável”, prometeu criar um imposto de 3% sobre o preço das casas adquiridas por cidadãos estrangeiros, com o objetivo de começar a contrariar a perceção pública de que são os compradores estrangeiros que transtornam o mercado imobiliário, comprando e retendo apartamentos como se fossem investimentos bancários à espera de maturação. Em Londres, disse o primeiro-ministro, uma em casa oito casas novas construídas em Londres entre 2014 e 2016 foi comprada por alguém que não reside no Reino Unido. Johnson espera que a medida gere 120 milhões de libras (140 milhões de euros) por ano, que seriam canalizados para ajudar a população sem-abrigo. Claro que só saindo da UE é que esta medida é imediatamente aplicável, segundo o governante.