Numa era caracterizada pela simplificação excessiva, é crucial resistir ao fascínio de limitar as eleições turcas a uma mera oposição entre democracia e autoritarismo ou islamismo e secularismo. Embora esses elementos certamente permeiem o discurso político, a realidade é muito mais intrincada e exige uma compreensão mais ponderada. A história da Turquia, amalgamada com o legado do Império Otomano, acrescenta camadas de profundidade e complexidade à sua dinâmica política. Os ecos deste passado imperial ressoam no presente, infundindo a paisagem eleitoral com um significado histórico que não pode ser negligenciada.
A vitória de Erdogan contra Kilicdaroglu tem implicações domésticas, regionais e internacionais. Por um lado, ele recebeu o apoio de uma parte significativa do eleitorado, ao mesmo tempo que é possível observar as divisões contínuas e a polarização na sociedade. À medida que irá assumir um novo mandato, podemos questionar se vai promover um senso de coesão nacional e reconciliação, perante os desafios no país. O tecido sociopolítico da Turquia requer uma abordagem mais inclusiva, mas considerando a erosão das instituições democráticas e o resultado que solidifica o poder absoluto, o que levanta dúvidas e preocupações relativamente à liberdade de expressão e ao Estado de direito.
Os próximos tempos serão essenciais para que a liderança de Erdogan consiga suplantar as divisões sociais e fomentar uma governação mais inclusiva, caso contrário, e considerando a diversidade da sociedade turca, podem surgir tumultos internos. As disparidades económicas, a inflação elevada e as taxas de desemprego também colocam desafios consideráveis ao bem-estar da população. Para além disso, antes das eleições, os discursos contra os migrantes e os refugiados destacaram-se pelas posições duras dos ambos candidatos. Contudo, o que mais surpreendeu foi o discurso de Kilicdaroglu, que gerou controvérsia e debate. Considerado o candidato da oposição após um longo e complicado processo entre os vários partidos unidos para enfrentar o presidente Erdogan, a sua candidatura surgiu como uma esperança para muitos turcos e outros países, de que iria trazer a Turquia de novo para um caminho mais democrático.
É importante moderar a expectativa de que outra liderança poderia ter força suficiente para fazer as mudanças necessárias, visto que enfrentaria uma maioria parlamentar hostil pró-Erdogan, impedindo a agenda interna e externa do potencial eleito Kilicdaroglu. O cenário real é que o país tem um problema sério com os migrantes e refugiados, que exige uma abordagem global, combinando esforços humanitários, políticas de integração sustentáveis e cooperação com os parceiros internacionais, principalmente a União Europeia, que tem desviado o olhar. O continente europeu é o destino almejado por muitos destes migrantes e refugiados, portanto, é premente encontrar uma solução diplomática com a Turquia, para que estas pessoas tenham o apoio necessário e evitar as tragédias diárias no mar Mediterrâneo.
Simultaneamente, a União Europeia deverá ter uma posição mais pragmática na sua diplomacia com a Turquia e outras potências. Em vez de gastar recursos para escrever white papers sobre a democracia vis-à-vis o autoritarismo, que depois na prática não têm utilidade, seria melhor se promovesse um diálogo construtivo com Ancara, centrando-se em interesses partilhados e objetivos comuns, evitando a imposição de um modelo único de governação. Este idealismo europeu não é racional nem é compatível numa ordem emergente multipolar. A abordagem pragmática não significa comprometer os valores fundamentais democráticos ou fechar os olhos às violações dos direitos humanos. Pelo contrário, significa reconhecer de que a mudança leva tempo e requer uma navegação cuidadosa e, nem sempre, linear. A Europa pode continuar a defender os direitos humanos, os princípios democráticos e o Estado de direito, mas de uma forma que respeite as complexidades e as nuances de cada contexto específico. Ao empenhar-se num diálogo e colaboração construtivos, pode contribuir para uma mudança gradual, criando oportunidades e simultaneamente, alianças para uma transformação positiva, elevando o seu papel como potência global.
Neste sentido, a política externa da Turquia cruza-se com o seu papel mais vasto na ordem mundial. Com uma posição geoestratégica, situado na encruzilhada da Europa, da Ásia e do Médio Oriente, o país encontra-se na frente dos fluxos de migração e refugiados. Por outro lado, a Turquia é um ator crítico nos assuntos regionais e internacionais. A visão de Erdogan, que combina elementos do nacionalismo turco, do neo-otomano e do islamismo refletem a ambição em tornar o país numa potência global parte de uma nova ordem multipolar. O resultado destas eleições tem o potencial de moldar não só o percurso da nação, como também cimentar a sua posição, influenciando a dinâmica diplomática e o equilíbrio geopolítico. O presidente não é um ator irracional, o que indica que a sua visão irá se expandir, não se limitando apenas a um conjunto de relações, mas procurando negociar com os vários centros de poder, tanto autoritários como democráticos, num mundo multipolar. Como membro da Nato, a Turquia tem uma posição privilegiada em estar em ambos os lados, apesar de ser considerado um parceiro em que não se pode confiar plenamente. O seu envolvimento em vários conflitos, desde a Síria, Líbia ou Nagorno-Karabakh, demonstram claramente a ambição de aumentar o seu poder geopolítico e por outro lado, desviar as atenções das questões internas.
Apesar da sua reeleição, muitas pessoas estão desiludidas e insatisfeitas com o seu governo e as suas políticas. A oposição esta cada vez mais fortalecida, à medida que o pais submerge numa crise económica e social, o que pode dificultar o seu novo mandado e as suas pretensões. Portanto, segue-se um período incerto e instável, marcado também pela incerteza no cenário da política global.
O mito de Perséfone, um conto cativante da mitologia grega, contém paralelos com a política turca, lembrando-nos que as transições políticas não são lineares ou estáticas, mas incluem períodos de crise e oportunidades de renascimento. A história de Perséfone, marcada pelo seu sequestro ao submundo e posterior retorno ao mundo dos vivos, reflete a natureza cíclica da dinâmica do poder político. Nesse mito, Perséfone representa tanto a vulnerabilidade como a resiliência das sociedades à medida que navegam no fluxo e refluxo das transformações políticas. Olhando para o futuro, as mudanças na política turca também dependem da capacidade e a resiliência do seu povo face às tendências autoritárias. É através do envolvimento ativo dos cidadãos, que o futuro da política no país pode ser moldado, avançando para um sistema mais inclusivo, participativo e responsável.