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“Provavelmente estou feito”: leia em exclusivo a pré-publicação de “Patriota”, o livro de memórias de Alexei Navalny

O Expresso publica em exclusivo um excerto do livro que o opositor a Vladimir Putin escreveu antes de morrer, e que será lançado internacionalmente no próximo dia 22 de outubro. “Patriota” é editado pela Ideias de Ler/Porto Editora (tradução de Jorge Pereirinha Pires), após preparação sigilosa, sujeita a elevadas regras de segurança. Ao longo das 512 páginas, Navalny conta de onde vem e o que move, mas também a forma como o regime de Putin acaba com todas as esperanças do advogado poder sair da prisão com vida, o que se confirmou quando foi dado como morto, em fevereiro passado. O estilo da escrita é contundente e autoirónico, semelhante ao que Navalny usava nos vídeos em que denunciava a corrupção dos políticos próximos de Putin, e revela como os funcionários do regime foram conseguindo torturá-lo sem as que as suas ações pudessem ser consideradas atos de tortura, do ponto de vista legal. O excerto publicado pelo Expresso corresponde à primeira parte do livro e diz respeito ao envenenamento de Navalny com novichok, um agente que atua a nível neurológico, desenvolvido pelos soviéticos durante a época da Guerra Fria

Alexei Navalny no comício de greve dos eleitores após a sua candidatura à presidência ter sido rejeitada, 2018. Foi detido no comício e esteve preso durante quinze dias
Evgeny Feldman

PARTE I

À BEIRA DA MORTE

1

Morrer realmente não doeu. Se eu não estivesse a soltar o meu último suspiro, nunca me teria estendido no chão ao lado da retrete do avião. Como poderão imaginar, não estava propriamente limpo.

Eu estava a voar de Moscovo para Tomsk, na Sibéria, e sentia-me muito bem-disposto. Dentro de duas semanas haveria eleições regionais em várias cidades siberianas, e eu e os meus colegas da Fundação Anticorrupção (FAC) estávamos muito decididos a infligir uma derrota ao partido Rússia Unida, que se encontrava no Governo. Isso enviaria uma importante mensagem de que Vladimir Putin, mesmo após vinte anos no poder, não era omnipotente, nem sequer gostava particularmente daquela parte da Rússia – apesar de um grande número de pessoas naquela região verem os comentadores elogiar o líder da nação na televisão vinte e quatro horas por dia.

Durante vários anos eu estivera impedido de me candidatar a cargos. O Estado não reconhecia o partido político que eu liderava e recentemente recusara registá-lo, pela nona vez em oito anos. De algum modo, nunca conseguíamos «preencher corretamente os formulários». Naquelas muito raras ocasiões em que algum ou alguma dos nossos candidatos conseguia inscrever o seu nome nos boletins de voto, encontravam-se os pretextos mais rebuscados para lhes negar a elegibilidade. O desafio com que se confrontava a nossa rede – que no seu auge chegou a ter oito delegações regionais, sendo uma das maiores do país e estando sob constante ataque do Estado – exigia, por conseguinte, uma capacidade esquizofrénica para vencer eleições das quais éramos banidos.

No nosso país autoritário, onde durante mais de duas décadas o Governo tomou como sua prioridade inculcar no eleitorado uma crença de este ser impotente e nada poder alterar, não era fácil convencer as pessoas a saírem de casa para ir votar. Por outro lado, no entanto, o rendimento delas tinha vindo a decair durante sete anos consecutivos. Se pelo menos um terço daqueles que estavam fartos do regime pudessem ser levados até às cabinas de voto, nenhum dos candidatos de Putin teria qualquer possibilidade. Mas como levar as pessoas a votar? Pela persuasão? Oferecendo recompensas? Escolhemos a opção de fazer com que as pessoas ficassem mesmo irritadas.

Nos últimos anos, eu e os meus colegas tínhamos andado a filmar uma interminável telenovela acerca da corrupção na Rússia. Recentemente, quase todos os episódios tinham atingido entre três a cinco milhões de visionamentos no YouTube. Dadas as realidades da Rússia, desde o início virámos costas à abordagem jornalística cautelosa com um sem-fim de qualificativos –  «alegado», «possível», «suposto» – que é tão apreciada pelos conselheiros jurídicos. Chamámos «ladrão» ao ladrão, «corrupção» à corrupção. Se alguém tinha uma enorme propriedade, não nos limitávamos a indicar a existência dela, mas filmávamo-la com drones e mostrávamos a propriedade em toda a sua magnificência. E ficávamos a saber o valor dela, comparando-a com o modesto rendimento oficialmente declarado pelo seu proprietário burocrata.

Pode-se teorizar tudo o que se quiser acerca da corrupção, mas eu preferi uma abordagem mais direta – como estudar as fotografias de casamento do secretário de imprensa do presidente e, quando ele beija a noiva, concentrarmo-nos no espetacular relógio que espreita sob a manga da sua camisa. Obtivemos certificação de um fornecedor suíço em como o relógio custava 620 mil dólares, e expusemos isso aos cidadãos do nosso país, onde uma pessoa em cada cinco vive abaixo do limiar da pobreza – 160 dólares por mês, que poderia ser mais justamente descrito como o limiar da indigência. Tendo irritado o suficiente os nossos espectadores com o descaramento dos funcionários corruptos, indicámos-lhes depois um site onde se encontra a lista daqueles em quem deverão votar na sua região se não quiserem continuar a sustentar a vida de luxo dos seus burocratas.

Funcionou.