Como em Portugal e noutros países com presidentes da República, mas sem regime presidencialista, também no Reino Unido as leis aprovadas no Parlamento requerem promulgação pelo chefe de Estado, no caso, a rainha. É uma mera formalidade: Isabel II não pode mudar leis. Este processo é conhecido por “consentimento real”.
Mas há outro âmbito do poder da monarca, muito menos debatido e, também por isso, alvo de uma investigação lançada pelo diário “The Guardian” em fevereiro de 2021: a questão do “consentimento da rainha”, que, segundo a tradição, é dado antes de uma lei ser aprovada pelo Parlamento.
O site da família real descreve este mecanismo como “convenção estabelecida há muito tempo” e os estudiosos constitucionais tendem a considerar o consentimento um exemplo opaco, mas inofensivo, da pompa que envolve a monarquia. Os documentos que “The Guardian” revela, deixam claro que o processo, por permitir à rainha e aos seus advogados conhecimento antecipado dos projetos de lei, permitiu um forte exercício de lóbi no sentido de obter mudanças favoráveis a Isabel II, aos seus descendentes e às suas propriedades.
Dos animais à polícia
Desde 1967, foram inscritas na lei mais de 160 isenções personalizadas para a rainha, enquanti cidadã privada, que a isentam de cumprir determinadas partes da lei britânica. Essas exceções, que “The Guardian” revela esta quinta-feira após análise documental extensa no Arquivo Nacional, tocam vários dossiês: do bem-estar animal aos direitos dos trabalhadores nas propriedades da família real, passando por regras específicas quanto à presença de polícia dentro dos seus terrenos.
Mais de 30 leis estipulam que a polícia está impedida de entrar nas propriedades privadas de Balmoral (Escócia) e Sandringham (Norfolk, no centro-leste de Inglaterra) sem a permissão da rainha, incluindo para investigar crimes contra a vida selvagem ou por poluição ambiental – uma isenção de que mais nenhum proprietário no país pode gozar, independentemente da dimensão das suas terras.
As 160 isenções que o diário britânico desenterrou sugerem uma mudança fundamental na forma como a questão da imunidade de Isabel II está a ser utilizada. A imunidade de um chefe de Estado ou de Governo, ou mesmo a dos deputados, é um conceito jurídico presente em diversos países; só é diferente no Reino Unido por não haver lei específica que estabeleça as regras que sustentam este conceito, valendo a convenção.
Parte deste acordo tácito vem dos tempos medievais, quando os reis absolutos eram vistos como fonte de toda a virtude e justiça e, como tal, estavam divinamente impedidos de cometer crimes. Mas há outra razão: os tribunais “pertencem” à rainha, “pelo que ser obrigada a comparecer neles seria como se estivesse a criminalizar-se a si mesma”, escreve “The Guardian”.
Mistura entre público e privado
Desde 1800, o monarca tem uma personalidade privada legalmente distinta, criada para permitir que os membros da monarquia pudessem acumular riqueza e transmitir os seus bens aos seus filhos. “No entanto, as linhas entre os dois são um pouco confusas, e a imunidade da soberana tem sido tipicamente interpretada para se aplicar às identidades públicas e privadas do monarca.”
Qual é o problema? “Enquanto noutros tempos a imunidade soberana significava que a rainha não podia ser processada, sem que isso estivesse especificamente declarado em lei, o princípio que está a ser escrito na lei abrange agora os seus interesses privados, bem como sua conduta como monarca. Não só a rainha não pode ser processada por comportamento criminoso, mas, num nível mais profundo, certo comportamento que seria ilegal é, de facto, permitido se realizado por ela”, escreve “The Guardian”.
No ano passado, o jornal escreveu que o consentimento da rainha foi usado para permitir que a família real examinasse mais de 1000 leis durante o reinado de Isabel II. Em resposta, o Palácio de Buckingham afirmou que esta ferramenta é um processo puramente formal que não resulta em mudanças substanciais na política.
Só que os exemplos de interferência não são poucos e não se resumem a potenciais crimes ambientais ou contra a fauna das propriedades reais, o que já poderia ser considerado grave. Documentos do Ministério do Interior dos anos 60 revelam que ministros e funcionários públicos acreditavam que não garantiriam o consentimento da chefe de Estado para aprovar uma legislação de igualdade racial até que seus conselheiros estivessem convencidos de que esta não poderia ser aplicada contra a monarca.
Mais um exemplo: em 1973, numa lei sobre transparência financeira para empresas, foi acrescentada uma cláusula por exigência do advogado da rainha, de forma a ocultar do público a riqueza privada “embaraçosa” de Isabel II. Já este mês, foi revelado que os privilégios do consentimento foram usado no Parlamento escocês em 2021 para modificar um projeto de lei para que a rainha, um dos maiores proprietários de terras da Escócia, se tornasse a única pessoa no país que não está obrigada a facilitar, nas suas terras, a construção de infraestruturas para aquecimento de edifícios usando energia renovável.
Thomas Adams, que analisou a conclusões da investigação e é especialista em direito constitucional da Universidade de Oxford, disse que a influência dos advogados da rainha na lei é “algo com que os lobistas apenas podem sonhar”. Em mais de 70 anos de reinado, as ocasiões para exercê-la não foram poucas.